Sob impulso russo, Brics aceleram pagamentos sem dólar, mas moeda própria ainda é sonho distante


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Oct 16 2024 7 mins  

Anfitriã da cúpula do Brics este ano, a Rússia quer aproveitar a reunião de chefes de Estado dos países emergentes para impulsionar os projetos de sistemas financeiros alternativos ao dólar. A criação de uma moeda única do bloco, entretanto, ainda é um sonho distante, que esbarra na grande assimetria econômica e geopolítica entre os seus integrantes.

Os líderes do Brics se reunirão em Kazan, no oeste russo, na próxima semana, e discutirão diferentes projetos de mecanismos financeiros alternativos ao dólar no comércio intrabloco: o Brics Pay, equivalente à plataforma internacional de pagamentos Swift, o Brics Bridge, sistema baseado em blockchain que interligaria os respectivos bancos centrais, e a eventual moeda comum dos Brics.

"A ideia é se liberar de algumas amarras que, para eles, não têm mais muita razão de existir, dado o peso econômico destes países. Eles veem como algo quase irracional: por que deveríamos ainda precisar tanto do dólar para as nossas transações entre nós, entre Brasil e China, por exemplo?”, afirma Carl Grekou, economista especialista em finanças do Centro de Estudos Prospectivos e de Informações Internacionais (CEPII), em Paris. "Para muitos deles, o aspecto antidólar não conta tanto quanto o objetivo de apenas simplificar as coisas. Mas por trás disso tudo, tem a Rússia que claramente quer forçar a barra, afinal ela é alvo de sanções."

Desafio da expansão do Brics

Até agora, 32 países confirmaram presença no evento, na continuidade do processo de abertura do grupo iniciado na última cúpula, quando cinco novos membros se associaram oficialmente ao Brics – Emirados Árabes Unidos, Arábia Saudita, Irã, Egito e Etiópia.

A expansão complexifica ainda mais um projeto que já não era fácil de concretizar: se, por um lado, os aspectos técnicos são relativamente simples de viabilizar, a coesão interna de países tão diversos e apegados à sua soberania é uma barreira importante a ser superada.

"Mas eu acredito que, dentro de um horizonte de alguns anos, se tenha um avanço considerável para intensificar essas transações. Estes exemplos têm uma base técnica que já é bastante controlável, já se tem um domínio dessas técnicas”, destaca Marcelo Milan, do Departamento de Economia e Relações Internacionais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFGRS).

"Resta a questão do direcionamento, de intensificar os fluxos em uma direção ou outra, para que o bloco possa criar mecanismos para que os arranjos de pagamentos sejam feitos cada vez mais com referência nas moedas nacionais e, se um dia for possível, nessa moeda comum", aponta Milan.

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Peso desproporcional da China

O maior problema rumo à moeda própria é que pressuporia uma preponderância do yuan chinês, dado o peso desproporcional de Pequim dentro do grupo. A maioria dos países rejeitaria a ideia de assumir o yuan como principal referência e em especial a Índia, garante o pesquisador Julien Vercueil, ligado ao Departamento de Comércio Internacional do Instituto Nacional de Línguas e Civilizações Orientais (Inalco) da França.

“Envolve muito engajamento político e econômico, a possibilidade de terem de enfrentar choques assimétricos, de viabilizarem grandes transferências de riquezas de um país para o outro. Ainda estamos muito longe desse tipo de configuração dentro dos Brics, sem mencionar o fato de que eles não estão nada sincronizados nos seus ciclos econômicos, ao contrário do que temos na Europa com o euro, por exemplo”, resume. "Ou seja, eles teriam problemas econômicos insuperáveis para adotar esta moeda.”

Especialista na economia russa, Vercueil avalia, entretanto, que os Brics tentarão passar como sendo já moeda própria os outros dois projetos mais avançados – para os quais o sistema Cips chinês parece servir de modelo. O Cips (China International Payement System) já começou a se interligar aos bancos centrais de alguns países do grupo de emergentes.

"Enquanto eles decidem se uma das moedas nacionais poderia substituir o dólar – afinal, os países não querem substituir a hegemonia do dólar por uma outra –, eles definem que tipo de unidade de conta e meios de pagamentos poderiam ser utilizados”, explica o pesquisador do Inalco.

O contexto geopolítico atual, com as pesadas sanções ocidentais à Rússia, além da presença de outro recém ingresso membro do Brics, o Irã, levou os membros do bloco a acelerarem uma solução alternativa ao dólar e ao sistema Swift, do qual Moscou foi banido. O país acumula grandes excedentes comerciais e monetários desde o início da guerra na Ucrânia.

“O projeto segue o seu curso e, muito provavelmente, deverá sair uma vez que eles conseguirem validar os seus sistemas de pagamentos. Quando eles forem bem operacionais, poderão até chegar a uma moeda Brics”, observa Carl Grekou. "Mas uma das principais funções de uma moeda é a de reserva de valor. Será que os países do Brics terão algum interesse em ter as outras moedas uns dos outros para além das questões comerciais? Este é o ponto que focaliza as atenções e que, potencialmente fará com que o dólar continuará a ter um papel central."

Hegemonia do dólar

Hoje, pelo menos 85% das transações comerciais e financeiras internacionais são feitas em dólar. Sobram no máximo 15% para moedas seguras como euro, libra esterlina, yen ou franco suíço.

Apesar do seu uso ter crescido, o yuan é presente em no máximo 2,5% das trocas mundiais. Porém, uma vez que o sistema de pagamentos do Brics se consolidar, os países membros – grandes produtores de matérias-primas valiosas, como petróleo e metais raros – poderiam optar por abrir mão da moeda americana nessas transações.

“A gente está sempre muito focado na China, mas a Índia também tem um peso significativo. Na medida em que os países do bloco passem a utilizar as próprias moedas e reduzirem o papel do dólar, vai ter um impacto econômico importante, com desdobramento político também, com a capacidade de eles se financiarem com custo baixo – como os Estados Unidos fazem, com o uso internacional do dólar”, frisa Marcelo Milan.

A 16ª cúpula do Brics ocorrerá de 22 a 24 de outubro. Até o momento, 24 chefes de Estado confirmaram presença no evento, entre eles o brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva.