A memória do Holocausto também diz respeito ao Brasil, relembra historiadora


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Jan 27 2025 15 mins  

O dia 27 de janeiro marca os 80 anos de libertação do campo de concentração de Auschwitz, símbolo da exterminação dos judeus pelos nazistas. Desde 2005, a data, por decisão da ONU, é lembrada como o Dia Internacional em Memória às Vítimas do Holocausto. A historiadora e professora da USP, Maria Luiza Tucci Carneiro, uma das maiores especialistas de Holocausto no Brasil, diz que a rememoração este ano ganha maior relevância e ressalta que a memória do Holocausto “diz respeito também ao Brasil”.

O campo de concentração de Auschwitz, na Polônia, foi libertado em 27 de janeiro de 1945 pelas tropas soviéticas. Mais de um milhão de pessoas, a maioria esmagadora de judeus, foram exterminadas no local. A cerimônia este ano em Auschwitz reunirá as poucas dezenas de sobreviventes, todos com mais de 90 anos, que serão os únicos a pronunciar discursos.

A historiadora e professora Maria Luiza Tucci Carneiro é uma das maiores especialistas de Holocausto e antissemitismo no Brasil. Ela é coordenadora do Leer, Laboratório de Estudos sobre Etnicidade, Racismo e Discriminação junto ao Departamento de História da USP, onde desenvolve o projeto Arqshoah - vozes do Holocausto e antissemitismo no Brasil.

Para ela, o Dia Internacional em Memória às Vítimas do Holocausto ganha uma nova relevância devido ao ataque do Hamas de 7 de outubro contra Israel, do aumento recente do antissemitismo no mundo e das comparações entre a ofensiva de Israel em Gaza e o Holocausto.

Após o 7 de outubro, diz, houve "uma mudança de paradigma em relação ao conceito de genocídio, que é um conceito distinto dos crimes contra a humanidade e crimes de guerra”. O Holocausto “foi um genocídio singular (...) planejado e executado pela Alemanha nazista e países que colaboraram com um objetivo bem claro de exterminar judeus, ciganos, deficientes físicos, mentais e dissidentes políticos, entre os quais os Testemunhos de Jeová”, explica.

Racismo e antissemitismo de raiz

O antissemitismo não surgiu depois do 7 de outubro e nem na Segunda Guerra Mundial. “Nós temos que lembrar que o Holocausto resultou da persistência de uma mentalidade racista secular. Daí o conceito que eu tenho usado nos meus livros, é um racismo de raiz, é um antissemitismo de raiz”, define.

Tucci Carneiro salienta a importância do dia 27 de janeiro. “Não podemos permitir o apagamento dessa memória que não é só prestar homenagens aos mortos e aos sobreviventes. No conjunto, eu vejo como uma importante estratégia de prevenção de genocídios futuros e também alertando para o que acontece hoje em Gaza”. Relembrar é “uma forma de investir contra os negacionistas que insistem na tese de que Holocausto não aconteceu ou que a atual guerra em Gaza é um genocídio praticado por Israel”, enfatiza.

Centro e vinte judeus brasileiros foram entregues pela França à Alemanha nazista e o governo brasileiro manteve circulares secretas de 1933 a 1949 barrando a entrada de judeus europeus no país. Por isso, a historiadora ressalta que a memória do Holocausto “diz respeito também ao Brasil”. Ela considera “uma forma também de colaboracionismo com Alemanha nazista o governo brasileiro não ter acolhido refugiados em função das circulares secretas”.

Leia a entrevista completa ou clique na imagem principal para ouvi-la:

RFI: Depois do 7 de outubro, do aumento recente do antissemitismo e comparações entre a ofensiva de Israel em Gaza e o Holocausto, essa comemoração dos 80 anos de libertação do campo de concentração de Auschwitz ganha uma nova relevância?

Maria Luiza Tucci Carneiro: O 7 de outubro de 2023 realmente interferiu e deu uma nova relevância à data do 27 de janeiro, que é um dia importante de rememoração em memória das vítimas do Holocausto. Quando nós falamos de uma nova relevância, eu ressalto que essa nova relevância pode ser vislumbrada sobre alguns aspectos. Primeiro, porque o 7 de outubro acarretou uma proliferação do antissemitismo no mundo. Após esse ataque, nós também percebemos que houve uma mudança de paradigma com relação ao conceito de genocídio, veja bem, que é um conceito distinto dos crimes contra a humanidade e crimes de guerra. Temos que considerar também o que foi o Holocausto. É importante lembrar que ele foi um genocídio singular. Não único, lógico, porque nós tivemos, infelizmente, muitos outros que adentram o século 21. Nós temos que pensar que aquele evento a partir de 1933, ele foi um genocídio arquitetado, com objetivos declarados, acobertados até, podemos dizer, idealizado, planejado e executado pela Alemanha nazista, e países que colaboraram, com um objetivo bem claro de exterminar judeus, ciganos, deficientes físicos, mentais e dissidentes políticos, entre os quais os Testemunhos de Jeová.

E quais seriam os outros elementos?

MLTC: Um outro elemento que devemos considerar nos dias de hoje é que esse antissemitismo não surge ou surgiu a partir da data do 7 de outubro. Ele tem raízes seculares. O que nós percebemos é que houve de uma mutação no discurso, isso sim, e ao mesmo tempo o fortalecimento das acusações antissemitas. Em primeiro lugar, nós temos que lembrar que o Holocausto resultou da persistência de uma mentalidade racista secular. Os discursos que nós ouvimos hoje acusando Israel, acusando os judeus de uma forma generalizada, essas acusações foram gestadas há séculos. Daí o conceito que eu tenho usado nos meus livros, de um racismo de raiz, é um antissemitismo de raiz. Também temos que considerar, e até justificando por que não devemos usar o termo Holocausto para o que acontece em Gaza hoje, que o local de extermínio foi planejado. Foi planejado por uma nação culta que era no século 19 uma referência no campo das ciências, das artes, da filosofia, da tecnologia. Por que Auschwitz? Porque exatamente esse campo representou e representa até hoje uma versão acabada daquele laboratório que foi construído para matar em nível industrial, em série, planejado. É muito importante que sejam preservados, não só os testemunhos, mas também a preservação física dos campos de concentração e de extermínio. Nós não podemos permitir o apagamento dessa memória, daí a importância do 27 de janeiro.

Falando dos sobreviventes, como preservar a memória desses campos de concentração quando os sobreviventes são cada vez menos numerosos?

MLTC: Essa pergunta é muito importante porque hoje o que restou basicamente preservado com relação aos campos são resquícios. São marcas de um genocídio que deve ser considerado, lembrado, a partir tanto dos testemunhos dos campos de concentração, como também da documentação que vem sendo cada vez mais divulgada a partir da digitalização e disponibilização ao público. Nós temos que ter políticas de preservação de memória. Não apenas do ponto de vista educacional, mas também devemos articular projetos, colocar projetos em execução, relembrando porque muitos sobreviventes já não estão mais aqui. Relembrando também as rotas de fuga, as situações a que eles foram submetidos.

Essa memória não é só prestar homenagens aos mortos e aos sobreviventes, mas no conjunto eu vejo como uma importante estratégia de prevenção de genocídios futuros e também alertando para o que acontece hoje em Gaza. Isso nós temos feito aqui no projeto Vozes do Holocausto, divulgando testemunhos do passado que lembram que aconteceu na Alemanha nazista, mas também nos países ocupados, os colaboracionistas. É uma forma de investir contra os negacionistas que insistem na tese de que Holocausto não aconteceu ou que a atual guerra em Gaza é um genocídio praticado por Israel. Quer dizer, a gente percebe que com esses discursos deturpados, e muitas vezes mentirosos que circulam pelas redes sociais, que mesmo após 80 anos, quando ocorreu a abertura do Campo de Concentração de Auschwitz em 1945, a história e a memória do local continuam sendo uma ferida aberta.

E como era a posição do Brasil?

MLTC: Eu quero aqui ressaltar que o Holocausto ele não diz respeito apenas à memória da comunidade judaica como um todo ou apenas da história dos países europeus. Entre 33 e 45, diz respeito também ao Brasil. Recentemente, nós publicamos aqui pelo Leer um livro sobre a história de 120 brasileiros assassinados pelos nazistas, muitos dos quais foram enviados pelo governo colaboracionista da França para Auschwitz. É o livro Brasileiros no Holocausto e na Resistência ao Nazismo, publicado pela minha orientanda de mestrado Blima Lorber. Esse debate se faz necessário. Infelizmente, hoje não temos assim tantos sobreviventes, não só de campos de concentração, mas eu chamo muita atenção para as vozes daqueles que vieram fugindo também dos países ocupados, os refugiados.

O Brasil acolheu muitos desses refugiados, mas também sobreviventes dos campos de concentração. Como o país acolheu essa população? Lembrando que, ao mesmo tempo, o Brasil também recebeu nazistas fugindo da Alemanha sob ocupação dos aliados.

MLTC: Pelo trabalho que eu desenvolvi no meu livro “Cidadão do Mundo”, que aliás está publicado em francês pela L’Harmattan, eu cheguei a uma contabilidade com base nos documentos que eu consultei, mas acredito que existam muito mais no arquivo histórico do Itamaraty. Cheguei a contabilizar cerca de 14.000 vistos negados, indeferidos pelo governo brasileiro entre 1937 e 1949. Eu ressalto que no período pós-guerra, entre 1945 e 1949, muitos sobreviventes estavam em busca de um país que os acolhessem. No entanto, o governo brasileiro, não o Brasil, o governo brasileiro manteve as circulares antissemitas proibindo a entrada de judeus sobreviventes, que acabaram, muitos deles, entrando no Brasil com vistos na qualidade de católicos ou protestantes. Houve uma política muito bem sistematizada, secreta, que proibia a entrada, principalmente dos refugiados a partir de 1933. O Arqshoah detém hoje e disponibiliza importantes documentos que retratam essas histórias de vida, as dificuldades, as rotas de fuga. Quero ressaltar que eu considero uma forma também de colaboracionismo com Alemanha nazista o governo brasileiro não ter acolhido refugiados em função das circulares secretas. O fato de persistirem as circulares secretas de 1937 até 1949 comprova a persistência de uma política antissemita pelo governo brasileiro.

E como esses judeus e sobreviventes entraram?

MLTC: Entraram com a ajuda da comunidade judaica brasileira e outras importantes instituições judaicas e não judaicas, como a Cruz Vermelha Internacional. Somente após os anos 1950 é que eles começaram a ter uma liberdade de expressão, encontrar outros meios de sobrevivência para além da comunidade judaica.

Nós temos que levar em consideração esse apoio, não só da comunidade judaica, mas de instituições internacionais e autoridades, personalidades que ajudaram a salvar crianças principalmente. Eu lembro aqui o programa kindertransport, que é um trabalho que nós também estamos produzindo. Nós temos aqui 4 testemunhos de crianças que foram salvas no kindertransport e vieram para o Brasil. Então essas vozes são importantes.

Além dessas instituições, há também dois brasileiros que foram reconhecidos por Israel como “Justos entre as Nações”, quer dizer são pessoas que ajudaram a salvar judeus do Holocausto: a Aracy de Carvalho e o embaixador Souza Dantas. Os méritos deles são reconhecidos em Israel, mas eles também são reconhecidos e lembrados no Brasil?

MLTC: Sim. Eu me recordo muito bem quando eu comecei as pesquisas para o doutorado que deu origem ao livro “Cidadão do Mundo”. Um dos primeiros impactos foi exatamente os documentos que denunciavam o Souza Dantas como um embaixador que não estava seguindo as ordens, as regras impostas pelas circulares secretas. Tanto é que ele vai ser denunciado e vai ser processado pelo serviço administrativo do governo Vargas. E mesmo após a guerra, ele foi uma pessoa inicialmente ignorada, ficou no ostracismo durante muitos anos. Então, foi nos anos 1980 que Luiz Martins de Souza Dantas tornou-se uma figura conhecida, e depois reconhecida pelo Yad Vashem, assim como Araci de Carvalho. A Araci em Hamburgo e Luiz Martins de Souza Dantas em Paris. A história de Luiz Martins de Souza Dantas em Paris é fantástica. Ele emitiu vistos e salvou uma comunidade importantíssima de artistas, intelectuais, cientistas, escritores, que deixaram uma marca muito importante na cultura brasileira. Esse é o projeto atual que nós desenvolvemos no laboratório, que é a produção de uma enciclopédia chamada Travessias, onde nós reconstituímos as trajetórias dos artistas, cientistas, intelectuais. A maioria são pesquisas inéditas, e entre elas estão esses alvos por Luiz Martins de Souza Dantas e também Aracy de Carvalho, que não era diplomata, mas teve uma importância muito grande na ajuda a esses refugiados no Consulado-Geral do Brasil, em Hamburgo, ao lado de Guimarães Rosa, importante lembrar.

Mas existem outros nomes importantes que nós fomos descobrindo a partir dos testemunhos. Hoje, essas histórias têm um lugar importante na memória e o reconhecimento a partir de 30 de julho de 2024, quando o governo Lula sancionou uma lei instituindo o Dia Nacional de Lembrança do Holocausto em homenagem ao brasileiro Souza Dantas. Esse fato para mim é importantíssimo. No Brasil, vai ser rememorado em todos os dias 16 de abril, lembrando sempre a homenagem a Sousa Dantas. Eu vejo também como um reconhecimento muito oportuno do governo de que as circulares secretas foram marcas muito negativas para a história do Brasil, que nesse momento colaborou muito com a Alemanha nazista, ao impedir a entrada dessas pessoas que fugiam da violência genocida, não só da Alemanha, mas de vários países ocupados, entre os quais, eu ressalto, a França. É muito importante o reconhecimento da contribuição de Souza Dantas.

Quantos sobreviventes brasileiros ainda estão vivos?

MLTC: Nós temos cerca de 198 sobreviventes cadastrados no Brasil, sendo 163 no Estado de São Paulo. Destes, 18 participaram no evento de rememoração do Dia Internacional do Holocausto, organizado na Congregação Israelita Paulista em São Paulo nesse domingo (26). Eles eram muito crianças na época em que vieram para o Brasil. Então, são lembranças muitas vezes pelo ouvir contar através de seus pais, mas que demonstram segmentos muito significativos e emocionantes do trauma guardado por essas crianças. É uma cerimônia emocionante, muito marcante, e um ato de memória que realmente tem que ser repetido todos os anos, mas também ser levado para as escolas. Eu lembro aqui o papel importante de se estudar o Holocausto, que esse tema e esse dia do 27 de janeiro sejam também rememorados nas escolas brasileiras porque nós não temos aqui um programa instituído pelo governo e sim por articulações.

Ressalto o importante papel da educação no sentido, não só de preservar a memória, mas também de saber por que e como estudar o Holocausto sem confundir com genocídio. O conceito, a palavra Holocausto, em vários momentos foram deturpados. Eu espero que a data do 27 sirva para informar e também conscientizar a população, não só brasileira, da importância de se reconstituir esse passado para entender também um pouquinho melhor o que acontece hoje na Faixa de Gaza. Essa conscientização nos serve de alerta. Muitas vezes as informações acabam sendo deturpadas aproveitando-se da ignorância e desinformação, daí o papel importante da educação.