Feb 21 2025 6 mins
O cinema brasileiro mostrou a sua força nesta 75ª edição da Berlinale não apenas pela quantidade de obras apresentadas, tendo dobrado sua participação na programação oficial do festival alemão, mas pela qualidade de narrativas que compõem um verdadeiro panorama audiovisual de um Brasil diverso, inquieto e periférico, disposto a mostrar novas subjetividades para muito além dos clichês habituais.
Márcia Bechara, enviada especial da RFI a Berlim
Exemplo disso é o longa Ato Noturno, um suspense erótico brasileiro exibido na mostra Panorama, que concorre ao Teddy Awards, a maior recompensa destinada ao cinema LGBTQIA+ nessa vitrine internacional, como conta Marcio Reolon, que assina o longa ao lado de Filipe Matzembacher.
"A nossa intenção com Ato Noturno foi, primeiramente, abordar a performance, que é algo muito significativo para nós. Tanto para mim quanto para o Filipe, nos encantava muito a ideia de dois personagens que, para alcançar o sucesso nas suas profissões — tanto na atuação quanto na política — precisam encenar vidas públicas específicas, que contrastam com as expectativas em relação às suas vidas privadas", contextualiza Reolon. "Esses personagens escondem uma determinada vida pessoal e, ao mesmo tempo, comunicam uma vida pública de ilusão, por assim dizer", contemporiza o cineasta.
"Olhar queer latino-brasileiro"
"Já era nosso interesse há algum tempo explorar o gênero de suspense, que é algo que gostamos bastante. No início desse processo, pensamos muito no filme como algo etéreo, quase no ar, mas, à medida que fomos desenvolvendo a ideia, o projeto foi tomando forma como um thriller erótico — um gênero que nos fascina e que foi extremamente popular nos anos 1980 e 1990. Claro que, agora, buscamos atualizar esse gênero para os dias de hoje, com um olhar queer latino-brasileiro, trazendo a nossa perspectiva para o contexto contemporâneo", enfatiza.
Entrelaçamento entre o real e o imaginário
Da cena queer gaúcha para o melting pot do imaginário da Baixada Fluminense, com seus personagens e memórias, esse é o pano de fundo do filme Zizi, a Oração da Jaca Fabulosa, apresentado na seção Forum Expanded pelo diretor Felipe Bragança.
"Como o título sugere, o filme é uma fabulação em torno das memórias de um quintal na Baixada Fluminense, mais especificamente em Queimados, onde passei parte da minha infância. Esse quintal acumula camadas de história e cultura soterradas, mas também é um espaço de culturas plantadas, misturadas com conflitos que, aos poucos, vão formando um mapa afetivo da minha família e, em certa medida, desse subúrbio do Rio de Janeiro", contextualiza o diretor, que esteve também em outras edições da Berlinale.
"A proposta do filme era construir uma representação desse quintal. Não apenas um espaço físico, mas também um lugar que existe concretamente, mas ainda mais forte na imaginação e na memória", diz Bragança.
O filme se desenvolve nesse "entrelaçamento entre o real e o imaginário", onde o diretor mistura fotos e imagens de arquivo, além de vídeos gravados durante sua adolescência, "quando consegui minha primeira câmera de vídeo". "Registrei momentos como o Natal em família, o futebol na rua da frente, entre outras cenas do cotidiano que foram, de certa forma, encenadas, agora com a minha própria família", diz.
Cartas do Absurdo: a voz indígena e a violência da colonização
Em direção ao norte do país, mais especificamente na Amazônia, o filme Cartas do Absurdo, é inteiramente falado no idioma tupi, e se inspira em quatro cartas escritas no século XVII para refletir sobre a violência do processo colonial brasileiro e o genocídio indígena, como explica seu diretor, Gabraz Sanna: "Cartas do Absurdo é um filme que surgiu a partir de uma primeira imagem que eu capturei do Rio Amazonas, em Belém, em 2010. A partir dessa imagem, esperei mais de dez anos pelo filme que acompanha essas cenas, que podem ser vistas como o núcleo do projeto", explica.
"Cerca de um ano atrás, tive acesso a quatro cartas que foram recentemente descobertas. Essas cartas, escritas por indígenas no século XVII, falam diretamente sobre a violência e o processo de colonização do Brasil. Através delas, é possível perceber como esse processo, que começou no passado, ainda persiste, de uma maneira ou de outra, até os dias de hoje", contextualiza o diretor, destaque também na seção Forum Expanded da Berlinale.
"Embora o Brasil não seja mais uma colônia oficialmente, de várias formas ainda carregamos as marcas dessa colonização. Às vezes, é como se fôssemos uma colônia dos próprios donos do Brasil, para usar uma expressão provocativa", diz Gabraz.
"O filme, apesar de dialogar com documentos de três ou quatro séculos atrás — sendo que a primeira carta datada é de 1613 —, mantém uma atualidade impressionante. A reflexão que ele propõe sobre a história do Brasil revela um ponto de vista frequentemente invisibilizado ao longo do tempo, um ponto de vista indígena que conta uma parte da história que, por muito tempo, foi marginalizada", conclui o diretor mineiro, que hoje mora e produz no Rio de Janeiro.
Mergulho do interior de São Paulo
Entre vários outros destaques dessa mosaico cinematográfico brasileiro presente na Berlinale em 2025, o curta Arame Farpado traz o espectador para dentro do interior paulista. "O filme começa abordando o conflito entre a zona rural e o meio urbano, explorando como esses dois mundos, com suas realidades e valores distintos, se entrelaçam", detalha o diretor Gustavo Carvalho, estreante na Berlinale.
"O enredo gira em torno de personagens que seguem caminhos de vida diferentes, mas são forçados a se encontrar em uma mesma situação. A história foca em uma mulher religiosa que sofre um acidente e é atendida por um enfermeiro gay no hospital", detalha. "Esse encontro gera uma série de conflitos que refletem questões reais e complexas como um espelho do mundo contemporâneo. O filme busca representar essas realidades distintas, onde pessoas de vivências diferentes são colocadas na mesma situação e precisam aprender a lidar com as diferenças", defende Carvalho.
"Apesar de ser, em sua essência, um drama, há momentos de leveza e até de comédia, o que tem gerado boas reações do público, que riu bastante durante a exibição. Durante a sessão de perguntas e respostas [Q&A], as perguntas foram extremamente interessantes, algumas até surpreendentes, que eu mesmo não esperava", conta Carvalho.
A Berlinale fica em cartaz até o dia 23 de fevereiro na capital alemã.