Livro faz resgate inédito de perfis e trajetórias de torturadores da ditadura militar do Brasil


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Apr 10 2025 6 mins   1

As historiadoras Mariana Joffily, da Universidade de Santa Catarina, e Maud Chirio, da Université Gustave Eiffel, na França, fazem no livro "Torturadores" um mergulho sem precedentes para trazer à tona as identidades, trajetórias e motivações de uma das figuras mais invisibilizadas pela ditadura militar do Brasil (1964-1985). A pesquisa começou há 14 anos e, segundo as autoras, enfrentou momentos desafiadores — especialmente durante o governo Bolsonaro, quando o tema foi alvo de silenciamento.

Lançado pela editora Alameda no Brasil, o livro se dedica a reconstituir, em suas 300 páginas, um dos personagens mais polêmicos do regime militar no Brasil: o torturador. A historiadora Mariana Joffily falou sobre a a dificuldade de "encarnar a mão de assassinos" e como essa encarnação foi possível através do livro.

"A ideia inicial, o título inicial do livro era justamente 'A repressão em carne e osso'. Então, tinha exatamente essa ideia de encarnar a repressão política e entendê-la do ponto de vista dos homens e de algumas mulheres que preencheram, digamos, essa mecânica da tortura e da repressão como um todo", afirma.

"A minha primeira surpresa foi perceber que, apesar das dificuldades e do difícil acesso às fontes, era possível escrever a biografia desses agentes", conta a historiadora francesa Maud Chirio. "A ideia inicial de que ninguém havia contado essas histórias parecia impossível. Afinal, eles haviam sido centrais no imaginário coletivo e na construção da democracia, mas haviam desaparecido dos livros de história, talvez por terem obtido anistia e terem tido apagados os rastros de suas ações", contextualiza.

"No entanto, surpreendentemente, seus nomes eram públicos e havia muitos dados sobre eles, tanto na imprensa quanto nos arquivos das Forças Armadas, especialmente do Exército", lembra Chirio. "Outra surpresa veio dos próprios documentos de arquivo, como as folhas de alterações — registros que contêm elogios formais dos comandantes a esses oficiais, descrevendo sua atuação e inserção no sistema. Esses documentos revelam como essas pessoas, mesmo envolvidas em crimes graves, eram valorizadas e integradas à estrutura militar", ressalta. 

"Heróis" da repressão

"Uma das principais conclusões do nosso trabalho é que, embora agentes repressivos aleguem terem sido marginalizados após o período da ditadura, isso não corresponde à realidade. Durante a repressão política, eles foram tratados como heróis. Com a transição democrática, o Exército precisou negociar com os civis e silenciar essa aura heroica para facilitar o processo e evitar o desgaste de permanecer no poder", diz Mariana Joffily.

"No entanto, esses agentes continuaram protegidos e valorizados dentro da instituição, mantendo carreiras bem-sucedidas. A hipótese de que teriam sido transformados em bodes expiatórios foi descartada: eles seguiram sendo vistos internamente como combatentes de uma 'guerra real' — uma experiência rara na história do Exército brasileiro. Uma surpresa mais recente, durante o governo Bolsonaro, foi constatar que essa imagem heroica não havia se perdido", aponta a historiadora.

"A publicação dos nomes de torturadores representa um marco fundamental para compreendermos o papel do Estado brasileiro na estruturação do sistema repressivo. Ela nos permite analisar como o Estado atuou não apenas no recrutamento e formação dos agentes, mas também na premiação e legitimação de suas práticas", afirma Haroldo Ceravolo, da editora Alameda. "Mais do que ações individuais, trata-se de um projeto institucional que exige responsabilização. O trabalho de Maud Chirio e Mariana Joffily contribui de forma decisiva ao estabelecer a conexão entre os agentes da repressão e o Estado enquanto executor e legitimador da violência sistemática. Ao fazer isso, a pesquisa avança no entendimento do aparato repressivo e oferece fundamentos importantes para processos de responsabilização jurídica", diz.

"O livro rompe com a narrativa dos 'excessos' cometidos em porões isolados, ao demonstrar que a violação de direitos humanos foi uma prática sistematicamente organizada e operacionalizada por instituições oficiais do regime ditatorial", sublinha Ceravolo.

Agentes de uma rede complexa

"Embora fossem chamados de torturadores, é importante entender que eles fazem parte de uma rede maior envolvida na repressão política. Eles ocupam o centro desse sistema, mas é necessário considerar também as altas hierarquias e o funcionamento mais amplo do aparato repressivo", sublinha a autora. "Ao iniciar o trabalho, nos deparamos com dois extremos: de um lado, a visão abstrata de uma máquina de violência baseada em uma doutrina; de outro, a imagem de torturadores como homens sádicos com personalidades específicas", completa a também historiadora Maud Chirio.

"Faltava, entre esses polos, a compreensão de que esses agentes eram, como todos nós, seres sociais — com convicções, subjetividades e inserção em uma carreira guiada por reputação, recompensas simbólicas e senso de dever. Nosso objetivo no livro foi reconstruir essa complexidade, mostrando como esses indivíduos, apesar de sua individualidade, atuavam dentro de um sistema e de uma rede socioprofissional que possibilitou tamanha violência", ressalta Chirio. 

A identidade dos torturadores

Joffily conta que o primeiro trabalho foi identificar quem eram os agentes da repressão. "Antes mesmo da criação da Comissão Nacional da Verdade, começamos a investigar esses indivíduos, trabalhando em paralelo aos estudos da comissão. Encontramos listas de torturadores e repressores publicadas em um jornal alternativo, o que nos permitiu identificar nomes completos e traçar perfis — civis ou militares, e suas atuações. A partir disso, decidimos focar nos oficiais militares, pois percebemos que, embora fossem apenas parte do aparato repressivo, exerciam um papel central na repressão política", conta.

"Recorremos, então, a documentos burocráticos do Exército — como boletins reservados, folhas de alteração e almanaques — para reconstruir suas trajetórias e compreender tanto os aspectos ideológicos quanto institucionais que os inseriram nesse sistema repressivo", diz a pesquisadora.

"Em nosso trabalho, evitamos adotar uma abordagem 'psicologizante' para compreender o perfil dos agentes da repressão", ressalta Joffily. "Não acreditamos que suas ações possam ser explicadas apenas por traços individuais de personalidade. Optamos por uma perspectiva histórica e sociológica, que nos permitisse analisar como determinadas gerações de oficiais militares foram formadas dentro de um contexto específico: a Guerra Fria, marcada por confrontos ideológicos e pela valorização da segurança nacional", sublinha.

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"Dentro desse cenário, identificamos diferentes tipos de atuação — desde perfis mais burocráticos, passando por agentes engajados em operações diretas de busca e apreensão, até analistas de informação com perfil mais estratégico. Ou seja, não se tratava de um tipo psicológico único, mas de uma multiplicidade de trajetórias", lembra.

"Um dos aspectos centrais que nossa pesquisa busca destacar não é a diferença de personalidades entre os agentes, mas sim as diferentes posições que ocupavam dentro do sistema repressivo. É muito distinto ser um soldado que participa de prisões e atos de violência apenas por alguns meses após o AI-5, e depois se desliga do sistema, em comparação com aqueles que, ainda no início da carreira, optaram por seguir o caminho da repressão de forma especializada. Estes últimos buscaram treinamentos, formações específicas e foram atraídos pelas recompensas simbólicas e materiais que essa trajetória oferecia", defende a historiadora.

"Naturalmente, há diversidade de perfis psicológicos mesmo entre esses grupos — tanto entre os que atuaram pontualmente quanto entre os que fizeram carreira nesse campo. No entanto, nosso foco não foi demonstrar como a personalidade molda o comportamento, mas sim como a inserção em uma estrutura institucional específica transforma esse comportamento. A centralidade da nossa análise está justamente na relação entre posição ocupada, trajetória institucional e prática repressiva, mais do que em traços individuais", destaca Maud Chirio.

Torturador: "ser ou não ser, eis a questão"

Em relação à consciência dos agentes sobre a prática da tortura, Chirio destaca ser "improvável que algum deles se autodefina como torturador ou utilize esse termo como elemento de valorização pessoal ou profissional. Ainda assim, é evidente que a tortura estava plenamente integrada à missão que acreditavam estar cumprindo: a luta contra o comunismo e a subversão", contextualiza.

"Tratava-se de um saber prático amplamente compartilhado e legitimado no contexto da Guerra Fria, utilizado por militares franceses na Argélia e na Indochina, por agentes britânicos em colônias, e por regimes autoritários em toda a América Latina. Nesse contexto, a tortura era vista como uma técnica necessária para desarticular redes clandestinas e obter informações cruciais de forma rápida", diz.

Mariana Joffily ressalta a importância de notar "o uso sistemático de eufemismos" para descrever essas práticas. "Nenhum documento oficial fala abertamente em tortura. Em vez disso, utiliza-se uma linguagem técnica e militarizada: 'obter informações', 'neutralizar ameaças', 'coletar dados estratégicos'", explica. "Essa retórica desvia o foco da violência e dissocia a prática da carga moral negativa associada à palavra 'tortura'. Dentro dessa lógica, o ato de torturar é reconfigurado como parte de uma ação legítima em defesa de um suposto bem maior — a proteção da nação contra o 'inimigo interno'. Assim, mesmo sem o reconhecimento explícito da prática, ela é justificada, normalizada e, em muitos casos, naturalizada dentro do sistema repressivo", sublinha a historiadora brasileira.

Contornar o "silêncio do Exército"

"Uma imagem que sintetiza bem nosso trabalho é a tentativa de contornar o silêncio do Exército", diz Maud Chirio. "Para isso, utilizamos duas fontes principais: de um lado, o trabalho de vítimas e familiares, que produziram listas com nomes de torturadores e repressores; de outro, os arquivos burocráticos produzidos pelo próprio Exército, voltados à progressão de carreira e à aposentadoria dos militares. O cruzamento dessas fontes nos permitiu superar a ausência — ou destruição deliberada — dos arquivos diretamente relacionados à repressão", revela.

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"Foi um trabalho minucioso, quase artesanal, em que selecionávamos um nome e íamos atrás de informações específicas, nome por nome. Reunimos dados sobre centenas de pessoas. A tarefa foi lenta e complexa, pois lidamos com documentos áridos, de difícil acesso e repletos de siglas e termos técnicos próprios da instituição. Ainda assim, conseguimos driblar o projeto institucional de apagamento, que visava impedir a escrita de uma história sobre esses agentes. E conseguimos", comemora Joffily.

Sem confronto com os agentes da repressão

"Diferentemente de outras pesquisas, nós não realizamos entrevistas diretas com os agentes da repressão", explica Mariana Joffily. "A Maud [Chirio, coautora], em seu doutorado, havia feito algumas entrevistas, mas no trabalho conjunto utilizamos principalmente depoimentos já existentes, especialmente os colhidos pela Comissão Nacional da Verdade, pelo CPDOC e pelo Ministério Público Federal", especifica. 

"Evitamos buscar novos depoimentos por diversos motivos. Em 2015, tentamos contato com alguns indivíduos, mas fomos majoritariamente ignoradas ou recebemos respostas em que eles afirmavam preferir o silêncio. O contexto político era adverso: vivíamos um momento de crise institucional, pós-Comissão da Verdade, em que acadêmicos e jornalistas passaram a ser identificados como 'inimigos', rotulados como comunistas e tratados com desconfiança. Muitos dos agentes se mostraram ainda mais refratários, sobretudo após o trabalho do Ministério Público", explica Maud Chirio.

Contexto da pesquisa nos anos Bolsonaro

"Com a eleição de Jair Bolsonaro, alguns desses indivíduos passaram a se posicionar como 'vencedores', o que poderia indicar uma possível abertura para o diálogo. No entanto, nesse momento, tanto eu quanto Mariana [Joffily, coautora] já éramos associadas a setores considerados opositores, o que tornou o acesso praticamente impossível", lembra a historiadora francesa.

"Assim, optamos por priorizar o estudo de fontes documentais — ricas, abundantes e ainda pouco exploradas —, incentivando colegas a fazer o mesmo. Entendemos que, além da dificuldade de acesso, muitos dos que prestaram depoimentos nas audiências da Comissão da Verdade negaram participação ou forneceram informações falsas. Nosso foco, portanto, recaiu sobre a documentação escrita, que ofereceu uma base mais sólida para reconstituir a história do Estado repressor durante a ditadura", diz. 

O livro "Torturadores" pode ser adquirido pelo site da editora Alameda, ou das livrarias brasileiras Martins Fontes e Travessa, entre outras, além de plataformas como a Amazon. Na Europa, o livro é distribuído pela Arnoia e encontrado no site imosver.com, entre outros.