"Há todas as condições para eclodir um conflito armado em Moçambique" - analista


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Oct 28 2024 15 mins   2

Em Moçambique, a situação política continua incerta depois do anúncio na passada quinta-feira dos resultados das eleições gerais de 9 de Outubro, em que Daniel Chapo, candidato presidencial da Frelimo no poder foi dado como vencedor com um pouco mais de 70% dos votos, contra cerca de 20% para Venâncio Mondlane, apoiado pelo partido extraparlamentar Podemos.

Estes resultados foram rejeitados pela oposição que prometeu contestar junto dos órgãos competentes. Ontem, domingo, o Podemos apresentou um recurso junto do Conselho Constitucional, instância judicial que tem a última palavra sobre os resultados eleitorais. Afirmando basear-se em 70% das actas e editais originais, o partido que apoia Venâncio Mondlane diz que ele venceu as presidenciais com um pouco mais de 53% dos votos e que as suas estruturas obtiveram 138 mandatos nas legislativas, contra 91 para a Frelimo.

Neste sentido, esta formação reclama uma nova contagem dos votos, à semelhança de outras entidades, nomeadamente o CIP, Centro de Integridade Pública, que no seu mais recente boletim -publicado ontem- diz ter identificado pelo menos 170 mil votos falsos a favor da Frelimo e do seu candidato Daniel Chapo.

Paralelamente, apesar de uma relativa acalmia, depois das violências ocorridas durante os dois dias de protestos, quinta e sexta-feira, ONGs tendo contabilizado 11 mortos e cerca de 500 detenções, o fim-de-semana não deixou de ser marcado pelo baleamento de 6 a 7 simpatizantes do Podemos no sábado, no distrito de Mecanhelas, na província do Niassa, no extremo noroeste do país, à margem da comemoração da vitória da Frelimo pelos seus apoiantes.

A ocorrência foi noticiada nomeadamente pelo Centro de Integridade Pública, cujo editor Lázaro Mabunda, falou com a RFI sobre as possíveis evoluções políticas dos próximos dias, nomeadamente com a abertura para o diálogo expressada pela Frelimo, o activista começando todavia por referir-se ao que sucedeu em Niassa.

RFI: Este fim-de-semana foi marcado, designadamente pelo baleamento de seis a sete militantes do Podemos, um baleamento de que o CIP teve conhecimento e detalhou no seu boletim.

Lázaro Mabunda: O que aconteceu é que em todos os distritos, o partido (Frelimo) organizou-se e saiu à rua para celebrar a sua vitória. E em Mecanhelas aconteceu a mesma coisa. Estaria lá, nessas celebrações de cabeça-de-lista para a Assembleia provincial que vai automaticamente ser governadora da província de Niassa. Aconteceu que o Podemos também tinha uma marcha marcada. A marcha do Partido Podemos coincidiu com a concentração da Frelimo para a celebração da sua vitória, e a Frelimo estava concentrada no seu comité distrital. A trajectória da marcha do Podemos passava justamente em frente do Comité Distrital do partido Frelimo. O que acontece é que esses militantes do Podemos traziam pneus, traziam paus, traziam pedras e quando chegaram ali, onde estava o partido Frelimo, queimaram pneus, fizeram fogo ali com os paus que tinham e consta que ali começou-se a atirar algumas pedras. A polícia fez um cordão para proteger os elementos da Frelimo que estavam concentrados. Depois de um tempo, a polícia, para dispersar os membros do partido, começou a disparar para o ar, mas foi uma sequência de tiros disparados mais ou menos um ou dois minutos seguidos. Os membros do Podemos começaram a fugir. A polícia começou a persegui-los. Nesses disparos, a polícia usou balas verdadeiras e atingiu os simpatizantes do Podemos, dois dos quais, segundo a informação que tive, foram evacuados para a cidade de Cuamba, que é a segunda cidade mais importante de Niassa. Parece que pela gravidade, foram transferidos para Nampula.

RFI: Consta que durante estes incidentes, também houve jornalistas que estavam a cobrir estes acontecimentos, que viram os seus telefones celulares a serem confiscados.

Lázaro Mabunda: Sim, foram confiscados os seus telemóveis e foram ameaçados durante a confiscação dos telemóveis, porque um dos jornalistas estava a recusar-se a entregar o seu telemóvel. O responsável dos Serviços Secretos do Estado ameaçou o jornalista de espancamento. Ele disse claramente 'Se tu não me entregas o telemóvel, vou-lhe dar porrada'. Eles acabaram a entregar os telemóveis, foram levados para o gabinete do director da polícia local. Esteve lá também o representante dos serviços secretos, com o comandante da polícia. Ouviram os jornalistas, obrigaram-nos a apagar as imagens, mas eles recusaram-se. Acabaram cedendo. Devolveram-lhes os telemóveis sem terem apagado as imagens.

RFI: Tudo isto ocorre depois do anúncio dos resultados oficiais pela Comissão Nacional de Eleições. Falta ainda a validação ou não do Conselho Constitucional. O CIP, juntamente com outras entidades, emitiu um comunicado pedindo que a CNE publique os editais e faça o necessário para que de facto se esclareça o que aconteceu durante estas eleições, se houve de facto ou não fraude e que o Conselho Constitucional também analise seriamente as contestações que chegaram aos seus gabinetes.

Lázaro Mabunda: O que o CIP fez juntamente com outras organizações foi mesmo pedir que o Conselho Constitucional analise devidamente esses processos, porque o processo eleitoral foi bastante fraudulento. A Comissão Nacional de Eleições fez o seu trabalho altamente político, que não foi transparente. Todos os observadores foram claros nisso. Nós já dissemos por várias vezes que foi o processo mais fraudulento da história de Moçambique. A única coisa que a gente fez foi mesmo apelar para que haja, primeiro, se for necessário, uma auditoria ao processo pelo Conselho Constitucional, que actue dentro daquilo que são as suas atribuições, mas olhando a questão da transparência, como também o interesse nacional. A paz acima de tudo. Porque se o processo já começou a ser violento, nós não estamos a imaginar o que será depois da validação dos resultados pelo Conselho Constitucional. Então o Conselho Constitucional tem todos os elementos para decidir pela revogação do processo eleitoral ou a anulação do processo eleitoral. Nós estamos a apelar para que faça esse trabalho, consciente das suas atribuições, da sua responsabilidade pelo país todo, porque está em causa aqui a estabilidade. A estabilidade do país. Estamos a falar de mais ou menos dez mortos e tantos feridos e provavelmente este número não vai parar por aqui. As manifestações vão continuar. O candidato do Podemos já anunciou que vão ser 25 dias de manifestações e nesses 25 dias haverá muita morte, muitas pessoas feridas e o país está praticamente parado. Os comerciantes ou os empresários, neste momento, estão a acumular prejuízos. Só na manifestação do dia 21, o CTA (Sindicato do patronato) falou de milhões de dólares perdidos num dia. Então estamos a imaginar nos dias 25 e 26, quantos milhões foram perdidos e quantos milhões serão perdidos ainda mais, para além de vidas humanas. Então é o país todo que está parado, é a economia do país que está parada. Então tudo isso tem que entrar na equação do processo de tomada de decisão por parte do Conselho Constitucional. Portanto, o Conselho Constitucional, mesmo nas eleições autárquicas do ano passado, tinha todos os elementos para invalidar o processo eleitoral. Mas o Conselho Constitucional é um tribunal político e é controlado fortemente pelo partido Frelimo, tal como a Comissão Nacional de Eleições, os polícias militares, todos. Então, se eles não olharem para esses elementos, é o país que está a atrasar, está a tornar-se mais violento. As mortes desnecessárias vão aumentar.

RFI: Evocou precisamente o apelo à manifestação de Venâncio Mondlane. Venâncio Mondlane apelou também à união da oposição. A Renamo parece estar inclinada em, de facto, unir os seus esforços juntamente com Venâncio Mondlane. Julga que isto pode fazer com que alastre ainda mais o movimento de revolta?

Lázaro Mabunda: É possível, sim, e há todas as condições. Aliás, a informação que eu tenho é que essas negociações já vêm acontecendo antes da eclosão das manifestações. Refiro-me às negociações entre a Renamo e o Podemos de Venâncio Mondlane. Não sei os termos da negociação, mas provavelmente o próprio Venâncio tenha percebido que a Renamo é uma excelente plataforma para este conflito, empurrar os órgãos eleitorais, ou então o governo ou o partido Frelimo a aceitar uma negociação ou alguma coisa nesse sentido. Aliás, a própria Frelimo, pela primeira vez, disse que está aberta a negociações. Mas porquê a Renamo? Porque a Renamo, neste momento, olhando para o cenário político nacional, há todas as condições para eclodir um conflito armado em Moçambique e para isso a Renamo é a melhor plataforma, porque neste momento duvido que as manifestações nas cidades possam resultar efectivamente. Haverá muito derramamento de sangue até que haja esses resultados, porque o que estamos a notar é que há uma inflexibilidade gritante do partido Frelimo, sobretudo porque têm os militares e a polícia ao seu lado. Então usa esses órgãos de repressão para balear mortalmente. Há ordens para balear mesmo mortalmente. Então esses baleamentos vão enfurecendo cada vez mais as famílias. Mas também à medida que o tempo passa, as pessoas ficam sem o que comer, têm medo de ir ao mercado e depois que saquem os seus bens. Isto vai fazer com que haja pressão não só para a Frelimo, mas também para o próprio Venâncio Mondlane. Então, a união com a Renamo pode ser uma estratégia bem útil, porque se for, por exemplo, a ver um dos elementos do Podemos que foi baleado no dedo, ele foi confrontar um agente dos serviços secretos. Ele foi dizer 'Olha, eu sei que vocês têm um plano para me assassinar, mas nós também vamos usar azagaias. Vamos usar tudo o que é instrumento, porque sabemos onde é que vocês vivem. Vocês têm casa nas nossas zonas. Mate a mim, mas também nós estamos dispostos a lutar, a enfrentar-vos.' E lá naquelas zonas de Mecanhelas tem muitos elementos da Renamo e em toda aquela zona do Niassa. Então, este ambiente de repressão pode empurrar grande parte desses moçambicanos para voltar para o mato. Basta ter alguém que lhes dê armas. Basta haver alguém que diga 'olha, vamos distribuir as armas para tudo iniciar'. E outro elemento importante analisar é o seguinte: é que nalgumas zonas, houve tentativa de assalto a esquadras. Significa que a própria polícia está ciente de que as esquadras são lugares preferenciais de ataque e poderão ser no futuro, porque este nível de repressão, este nível de manipulação eleitoral, enfurece muita gente e há muita gente que já não tem nada para perder. Não tem nada para perder, porque grande parte dessas pessoas são pessoas pobres. Só consegue emprego aqui quem é membro do partido Frelimo. E mesmo esses membros do partido Frelimo, agora já nem são todos que conseguem porque o Estado já não consegue albergar toda a gente. Então o que está a acontecer é que há muito desemprego, há muita frustração, há muitos problemas e as pessoas estão dispostas mesmo a recorrer à força, à violência para confrontar a Frelimo ou tirar a Frelimo do poder. Então, esta predisposição para recorrer à violência pode fazer com que a Renamo seja um actor bastante importante, porque eu tenho a máxima certeza que provavelmente, se isto tivesse acontecido com a Renamo e todos aqueles elementos da Renamo que estão no mato, desmobilizados que não estão a receber absolutamente nada, alguns foram desmobilizados, mas o que eles recebem nem chega a 30 Euros. É uma ninharia para alguém que lutou, sacrificou a sua vida e, depois, tem filhos que não estão a fazer nada, estão desempregados, não conseguem se alimentar. Então este sofrimento todo faz com que estejam predispostos a pegar em armas e lutar. A Renamo já disse que está disposta a contestar os resultados. Agora resta saber se haverá possibilidade de um reencontro, uma reconciliação entre o Ossufo Momade (líder da Renamo) e o próprio Venâncio Mondlane.

RFI: Relativamente à mão estendida da Frelimo, este partido disse que está disposto a conversar com Venâncio Mondlane. Venâncio Mondlane, por seu turno, fala em governo de união nacional. Julga que há alguma hipótese de se chegar a um consenso?

Lázaro Mabunda: Pode ser. Mas o que não se sabe é se essas hipóteses são operacionalizáveis. O que Venâncio disse, os bispos católicos já tinham avançado como proposta. Eles recomendam que se constitua um governo de unidade nacional, que seria uma espécie de governo de transição, porque o país, neste momento chegou ao extremo que precisa de um processo de pacificação, de reiniciar todos os processos, mudança de instituições, mudança de comportamento das instituições, porque essas instituições são instituições que, durante 32 anos de democracia, não foram capazes de se democratizar por dentro. Foram instituições que continuam a reproduzir práticas de monopartidarismo. Essas instituições não mudaram o seu comportamento. Então, o que está a ser proposto aqui? Um governo de unidade nacional que vai trabalhar durante cinco anos poderá ser muito útil no sentido de construir novas instituições que não sejam partidárias e deixem de ser instituições ao serviço de um determinado partido. Então esta que é a ideia da criação de unidade nacional que começou com os bispos católicos. Depois o Venâncio reforçou esta ideia.