“Despertámos do sono profundo que o autoritarismo nos causou”


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Nov 06 2024 17 mins  

Maputo é esta quinta-feira o epicentro de uma marcha popular e o símbolo de uma semana de greve geral e manifestações. Há receios de “um banho de sangue”, depois de mais de uma dezena de pessoas terem morrido nos protestos de contestação eleitoral. Quitéria Guirengane, activista política e social e membro da Geração 18 de Março, pede ao Estado para pedir desculpas aos moçambicanos e “evitar banhos de sangue com uma mensagem de reconciliação e a reposição da verdade”. A activista não acredita que o povo esteja na rua apenas “porque houve uma convocação de Venâncio Mondlane”, mas porque a população “despertou do sono profundo do autoritarismo”.

Esta quinta-feira, Maputo é palco de uma mega-concentração, depois de uma semana de greve geral e de protestos convocados pelo candidato presidencial Venâncio Mondlane, naquela que ele chamou de “terceira etapa” da contestação aos resultados das eleições gerais de 09 de Outubro, anunciados pela CNE. Outros protestos tinham sido realizados nos dias 21, 24 e 25 de Outubro.

Quitéria Guirengane é activista política e social, lidera o Observatório das Mulheres, é membro da Geração 18 de Março e dirige uma linha de recepção de apoio às vítimas da violência policial. É também uma voz muito seguida nas redes sociais, onde tem partilhado testemunhos que lhe chegam de todo o país.

RFI: Como é que encara, antes de mais, este 7 de Novembro?

Quitéria Guirengane, activista política e social: Com uma dor muito forte no coração, com uma apreensão pelo número de vidas humanas, pela quantidade de sangue que se está a jorrar e que vão marcar de forma indelével a bandeira e a história de Moçambique. Como cidadãos moçambicanos e, acima de tudo, como parte de uma geração que não viveu a luta de libertação nacional, que não viveu a guerra dos 16 anos, viver este período difícil da nossa história é, sem dúvida, um abalo, mas, ao mesmo tempo, é uma convicção inabalável de que estamos diante de ausência de Estado e de ausência de liderança porque a existência de uma liderança é para que nos momentos difíceis saiba o que deve ser feito, saiba ouvir a voz do povo e saiba evitar banhos de sangue com uma mensagem de reconciliação, mas acima de tudo, com a reposição da verdade para que não tenhamos que chegar a estes níveis.

O que é que o povo espera destas manifestações e desta marcha para Maputo esta quinta-feira? Recorde-nos porque é que o povo está na rua?

O povo está na rua porque percebeu que nós estamos a viver uma colonização disfarçada, um sistema autoritário que é incapaz de dialogar. Eu não creio que o povo esteja na rua apenas porque houve uma convocação de Venâncio Mondlane, apesar de estar claro para todo o cidadão moçambicano que Venâncio Mondlane teve uma prestação na urna que foi negada, uma verdade que foi pisoteada e escamoteada. Diferente de anos anteriores, as redes sociais permitiram que os cidadãos acompanhassem ‘in loco’ a manipulação da verdade. Os cidadãos estão cansados da arrogância e, acima de tudo, do emburrecimento, da forma humilhante como têm sido tratados.

Disse que o regime não é capaz de dialogar, mas o Presidente de Moçambique disse, na terça-feira, que não tem dificuldades para dialogar e que é preciso esperar pela validação dos resultados eleitorais pelo Conselho Constitucional. Para evitar o “banho de sangue” de que você falou, porque é que não se opta pela via do diálogo? Porque é que não se espera pelo pronunciamento do Conselho Constitucional?

Eu não convoquei estas manifestações, mas eu percebo a indignação geral dos cidadãos moçambicanos. Moçambique vive um terrorismo eleitoral que não começou este ano. Vou-lhe trazer o exemplo das eleições do ano passado. Durante muito tempo se dizia que a oposição reclamava da fraude eleitoral, mas não trazia provas desta fraude. No ano passado, eu participei na elaboração de vários recursos eleitorais e foram entregues ao Conselho Constitucional evidências, vídeos feitos por cidadãos, de polícia a disparar dentro da assembleia de votos para impedir o eleitor de votar. Enviou-se material com evidência da falsificação de editais. Enviou-se material de evidência da negação do direito de reclamar na mesa de voto, enviou-se provas da obstrução da vontade popular, mas, mais do que isso, enviou-se provas de que havia pessoas que ganharam eleições e que a Comissão Nacional de Eleições substituiu a soberania que reside no povo, estabelecido pelo artigo 2 da Constituição da República, por um grupinho de pessoas que passou a decidir quem tem competência para governar ou não. Na altura, dizia-se “Vocês, como cidadãos moçambicanos, devem confiar nas instituições. Não reclamem, esperem o Conselho Constitucional se pronunciar. Depois vão reclamar porque o processo ainda não terminou…”

Ou seja, o povo não confia no Conselho Constitucional e não quer esperar?

Tem uma experiência porque no ano passado 40 recursos entraram no Conselho Constitucional e quando o Conselho Constitucional decidiu, disseram que as decisões do Conselho Constitucional são irrecorríveis, então, a partir daqui, quem sair à rua vai ser baleado porque é desobediência, nos termos da Constituição, desobedecer a uma decisão do Conselho Constitucional. Então, é o mesmo jogo se está a fazer este ano, está-se a dizer às pessoas: “Esperem pelo Conselho Constitucional". Quando o Conselho Constitucional se pronunciar, vão dizer às pessoas "Olha, é desobediência questionar o Conselho Constitucional”.

As pessoas estão a dizer que a verdade não se negoceia. No final do dia já não é sobre o resultado eleitoral apenas, é sobre a polícia ter entrado em casa de pessoas, lançar gás lacrimogéneo, matar pessoas só porque essas pessoas estavam a manifestar pacificamente na rua. Todos os vídeos em que vemos cidadãos a atirarem pedras, cidadãos a queimarem garrafas é consequência e reacção a uma brutalidade policial e militar que começou desde os primeiros minutos que as pessoas pacificamente foram à rua manifestar. É uma precipitação da violência.

Tanto o Presidente da República, o comandante geral da polícia, o ministro da Defesa, entre outros actores, sempre que vêm a público, começam um discurso de diálogo e depois falam de infiltrados, grupinhos, instrumentalizados, vândalos. Esses são os termos que quem quer dialogar nunca usa! Numa negociação, nunca se trata as pessoas que estão indignadas, cansadas, saturadas, como pessoas que estão a ser agitadas, como pessoas que estão a ser instrumentalizadas. Então, é preciso começarmos a pensar numa linguagem de reconciliação que não pisque à esquerda e vire à direita.

O ministro da Defesa Nacional de Moçambique admitiu que houve “excessos” por parte das forças de segurança para conter as manifestações, mas avisou que a corporação vai reagir “na medida” dos actos desenvolvidos por manifestantes. Não teme que a violência se possa empolar ainda mais?

Eu tinha algum apreço em relação ao ministro da Defesa, mas devo dizer, com toda a contundência, que o ministro da Defesa também faltou à verdade porque as Forças Armadas não vão reagir, as Forças Armadas já estão a reagir! E entraram num processo de manifestação desde o primeiro minuto, quando, nos termos da lei, a questão da manifestação não é governada pelas forças militares. Nós costumamos gozar em Moçambique e dizer que nós estamos a assistir ao comandante geral da polícia a dirigir as operações do terrorismo em Cabo Delgado e o ministro da Defesa a dirigir as manifestações em Maputo. Quer dizer, é um inverter de responsabilidades.

A segunda questão é que o ministro da Defesa, quando foi questionado sobre a questão dos militares que se têm estado a pronunciar, incluindo a questão dos cidadãos que se têm estado pronunciar, ele usou o termo “infiltrados”. Ele disse que pode existir um e outro infiltrado nas corporações. A partir do momento que você diz que todo aquele que discorda de si é um infiltrado, é porque você vai fazer uma caça às bruxas a seguir. A partir do momento em que os cidadãos se permitirem silenciar, vai começar um momento de vingança sem precedentes na história de Moçambique porque não há uma intenção real de “Olha, nós percebemos que provavelmente há um e outro militar que está insatisfeito ou que há militares insatisfeitos, e a nossa preocupação, como moçambicanos, é encontrar uma resposta ousada para unir estas vozes, percebemos que fizemos algo de errado e são esses erros que nós precisamos corrigir”.

Não é dizer “Ah, sim, houve alguns excessos”. Não houve alguns excessos, está a haver excessos! Eu que estou a dirigir uma linha de recepção de vítimas, estou a receber vítimas que estão a ser arrancadas no hospital. A polícia está a andar nos distritos, a ir a camas de hospital e a levar gravemente feridos para as celas. Está a tirar o direito à saúde que a Constituição da República e a Declaração Universal dos Direitos Humanos prevê. A polícia está a entrar na casa das pessoas, a lançar gás lacrimogéneo e a disparar. A história registou pessoas a baterem panelas nos seus prédios e a polícia lança gás lacrimogéneo porque as pessoas não podem bater panelas. Que tipo de Estado é este? Como é que nós chegámos a esse nível? Nós, como cidadãos moçambicanos, assusta-nos descobrir que as pessoas que nos estavam a dirigir têm ódio em relação aos moçambicanos porque isto não pode ser descrito de outra forma.

Então, não basta dizer que as forças vão reagir, as forças já estão a reagir e nós temos vídeos, temos evidências que as entidades internacionais e os tribunais locais e internacionais vão julgar um dia, que é de militares, que é de polícias, que é de indivíduos estranhos, aliás, até civis armados como se fossem milícias a disparar contra os cidadãos moçambicanos. Isto não devemos em nenhum momento tolerar.

Nós, como cidadãos moçambicanos, precisamos de um recomeço e não vai ser possível recomeçar o Estado - porque o Estado está destruído - se não houver uma abordagem de dizer “Falhámos, pedimos desculpas”. Um pedido de desculpas aos cidadãos moçambicanos porque não é um cidadão membro de um partido político, eu não sou membro do Podemos, não são os cidadãos dos mesmos partidos que estão a pagar. Todo o cidadão moçambicano, neste momento, está a ser afectado por este conflito.

Venâncio Mondlane, nas redes sociais, pediu ao povo que se defenda se for atacado no dia 7 de Novembro. Ele exortou o povo a exercer o seu direito de autodefesa com todos os meios disponíveis, caso as suas vidas estejam em risco. Como é que olha para este apelo e até que ponto não poderá empolar ainda mais a violência?

Eu, neste momento, estou com uma incapacidade de julgar a reacção popular, como faria em outros momentos. Eu sempre tenho aconselhado as pessoas para nos defendermos e agirmos com base na nossa Constituição da República, conhecendo os seus limites e garantindo que o exercício dos direitos seja feito com consciência de deveres.

Agora, a nossa Constituição da República prevê previsões para o direito de resistência, para a legítima defesa, tem previsões específicas para a tutela privada dos direitos, o que significa que qualquer cidadão que está numa situação de ameaça, existem artigos específicos da Constituição da República que permitem que a pessoa evite um dano maior que o sistema judicial vai ser incapaz de repor a posteriori.

Quando eu vejo um cidadão, eu começo a imaginar-me a mim. Se eu vejo um polícia, um civil armado e ele disparar contra o meu irmão, eu vou assistir esse civil. Quer dizer, é muito difícil para mim julgar neste momento porque ao mesmo tempo que eu não quero entrar em uma acção de incitação à violência, eu também não sou capaz de julgar como é que eu, como humana, haveria de reagir num tipo de situações desta natureza.

Por isso, eu não sou capaz de julgar o comportamento dos cidadãos, apesar de que há vozes que gostariam de nos ver acusar os cidadãos, na realidade, a nossa consciência de humanidade não nos permite tolerar ver um Estado que intencionalmente vai disparar contra os cidadãos, não porque esses cidadãos fizeram algum mal, mas só porque esses cidadãos estão a reivindicar um direito constitucional e nós todos nos posicionarmos do lado da cobardia. Este discurso vem depois de um ciclo enorme de polícias a mostrarem o seu poderio, alguns com uma arrogância determinada a irem a casa das pessoas.

Como cidadãos moçambicanos - o mundo está a testemunhar o que Moçambique está a passar neste momento - dói-nos a alma e temos o coração apertado. O que é que vai ser Moçambique amanhã? E como é que as partes se vão encarar? Porque o diálogo pode chegar tarde demais, pode chegar quando vidas já não são possíveis de recuperar. As pessoas não são números, não são estatísticas. Cada uma das pessoas que está a perder a vida tinha uma história, tinha um sonho e o nosso Estado, as partes, não estão a conseguir perceber que é possível evitar o banho de sangue e não é sobre uma parte cancelar, mas é sobre o Estado decretar um cessar-fogo e pedir desculpa aos moçambicanos por tudo o que aconteceu até este momento.

Falou várias vezes em banho de sangue. Venâncio Mondlane, nos seus directos no Facebook, apelou várias vezes aos militares e aos polícias para, passo a citar, “ficar do lado certo da história”. Acredita na possibilidade de os militares se juntarem ao povo? Isto não daria razão ao ministro da Defesa que fala em “sinais de intenção firme e credível de alterar a ordem constitucional” e não poderia isto legitimar o uso da força pelos militares?

Primeiro quero dizer que há militares e polícias todos os dias que pelos seus meios nos enviam sinais de que eles também são moçambicanos e que eles também não concordam com a abordagem de matar os seus próprios irmãos. Nem tudo está perdido neste país. Alguns se vêem reféns das ordens superiores, mas há muitos que até quando pegam um manifestante, ou mesmo que tenham que bater para o chefe ver, eles próprios dão sinal para os manifestantes poderem fugir. E isto marca-nos.

Agora, é importante dizer que quando se fala da alteração da ordem constitucional, a nós nos dói, como moçambicanos, perceber que a alteração da ordem constitucional não começa hoje. Nós já subvertemos a ordem constitucional e já subvertemos a vontade do povo. A partir do momento em que você tem presidentes de municípios não eleitos que fizeram golpes de Estado para poder se posicionar numa cadeira que o povo não lhe quer, isso não é uma subversão da vontade popular e da ordem constitucional?

O ministro da Defesa, a procuradora geral da República só estão a ver subversão da ordem constitucional hoje. Quer dizer, nós temos de ser um país mais preventivo, não reactivo e as forças de defesa e segurança têm que parar de ser milícias do partido Frelimo porque é sobre isso. É o partido Frelimo que jogou este país no pior lugar da história deste mundo e o partido Frelimo, com a sua arrogância, não está a ter pessoas de bom senso que se estão a levantar publicamente, não em segredo, publicamente, para vir dizer “Basta, nós queremos continuar a ser respeitados pelo povo, nós estamos a assistir ao que está a acontecer e não podemos continuar coniventes com isto”.

Não se venha amanhã [quinta-feira], no dia 8, no dia 9, atirar este banho de sangue a quem convocou as manifestações porque o povo está consciente de quem tem o poder de prevenir. A subversão da ordem constitucional já aconteceu. O Conselho Constitucional até deveria acelerar o seu papel e vir dizer “desculpem, perdoem-nos, nós estamos a ver o que está a acontecer e nós temos documentação que prova que não houve eleições”. Anule-se isto, encontre-se um governo de reconciliação, faça-se qualquer solução.

O Conselho Constitucional tinha a prerrogativa de, antes do dia 7, vir a público e dizer “não vamos continuar a brincar com o sangue das pessoas, vamos resolver este problema, a subversão da ordem constitucional em Moçambique já está, não está para haver. O que nós estamos a dizer é que a partir de hoje, esse Estado não tem pessoas para governar, não há governados aqui. Um governo humilde haveria de se demitir e dizer basta.

Como é que se evita um banho de sangue em Moçambique neste momento?

Reconciliação, verdade e liberdade. Pedir desculpa aos moçambicanos, vir uma atitude do Conselho Constitucional. Eu acho que já não é uma coisa que o Presidente Nyusi esteja em condições para fazer porque os cidadãos já perderam toda a confiança e perdeu toda a legitimidade governativa. É o Conselho Constitucional que deveria vir a público e dizer “Nós compreendemos o que está a acontecer neste país.”

Enquanto não houver verdade ou enquanto não houver um pedido de desculpas reais e não haver perdão, mesmo que os militares disparem contra todo o povo, mesmo que consigam eliminar 32 milhões, ainda vão continuar gotas de sangue nas estradas, nas avenidas, na história. Enquanto não houver esta atitude a dizer “falhámos e precisamos de reconstruir juntos”, não se pode aventar uma solução melhor para os cidadãos moçambicanos. Pior porque nós recebemos todos os dias mensagens de pessoas que nos dizem “nós estamos dispostos a morrer por este país” e ninguém deve se culpar pelo sangue jorrado porque ninguém nos agitou, nós apenas despertámos deste sono profundo que o autoritarismo nos causou.