Eleições americanas: "O projecto de Trump é um projecto autocrático"


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Nov 06 2024 19 mins   1

Contra todas as expectativas, com analistas a anteverem dias de incerteza quanto aos resultados das presidenciais de ontem nos Estados Unidos, o candidato republicano Donald Trump venceu o escrutínio com um resultado nítido, acima do patamar simbólico dos 270 grandes eleitores necessários para garantir a vitória face à candidata democrata Kamala Harris.

Quatro anos depois de sair da Casa Branca em atmosfera de insurreição, após o assalto ao Capitólio, Donald Trump regressa vitorioso para quatro anos na presidência da República. Quatro anos durante os quais, já disse que pretende operar uma série de reformas a nível da administração do seu país e da sua economia, sendo que ele anuncia igualmente uma inflexão da sua política externa, nomeadamente no que tange à Ucrânia, ao Médio Oriente, ou ainda à questão do meio ambiente.

Aspectos que abordamos com Álvaro Vasconcelos, antigo director do Instituto de Estudos de Segurança da União Europeia, com quem começamos por analisar a dimensão da vitória de Trump, inclusivamente com os votos de camadas da sociedade que habitualmente votam nos democratas.

RFI: Como se pode explicar que Trump tenha beneficiado nomeadamente dos votos de camadas da sociedade como os afro-americanos, o eleitorado latino e as mulheres?

Álvaro Vasconcelos: As primeiras análises mostram que os afro-descendentes, em particular as mulheres, votaram por Kamala Harris em larga maioria. O Trump progrediu no sector dos afro-descendentes e progrediu porque eles também são vítimas da inflação. Também há muitos afro-americanos que são sexistas, que vêem com preocupação o aumento dos direitos das mulheres. Nós estamos a assistir àquilo que eu tenho chamado uma "contra-revolução cultural", ou seja, todos aqueles direitos que foram conquistados desde a Segunda Guerra Mundial, em particular desde os anos 70, da igualdade dos direitos reprodutivos das mulheres, o direito ao aborto. Todas essas conquistas extraordinárias que desconstruíram a sociedade patriarcal afectam as convicções, as tradições, a identidade, de homens que não são necessariamente todos brancos. Também os afro-americanos sentem essa transformação da sociedade. Também foram educados numa sociedade patriarcal. E quando a inflação e o covid -porque lembremos que Biden foi presidente também ainda com o covid- quando o convite e a inflação atingem esse sector da sociedade, eles sentem-se reforçados na sua oposição àqueles que, estando no poder, defendem direitos que eles consideram que diminuem os seus direitos. O que é extraordinário é que o Trump aparece ao lado de Elon Musk, como um candidato libertário, aliás, como a Milei na Argentina, ou a extrema-direita europeia, até em França. Fala-se de liberdade de expressão. E qual é a liberdade de expressão? é a liberdade para ser racista, para ser sexista. E tudo isso, acho eu, explica que não basta ser negro para votar contra o racismo.

RFI: Um dos projectos de Donald Trump é reformar completamente aquilo que ele chama de 'Deep State'. Mudar todas aquelas camadas intermédias da administração americana. Para já, isto é concretizável? E o que é que isso pode implicar?

Álvaro Vasconcelos: Isso é o que torna ainda mais inquietante esta segunda vitória de Trump. É que da primeira vez que Trump foi eleito, Trump tinha que lidar com um Partido Republicano que, no essencial, era tradicional. Nem era trumpista. Trump era um candidato anti-sistema, anti-sectores poderosos do Partido Republicano e que foram contrapoderes em relação a Trump, inclusive na sua própria administração. Lembre-se que o vice-presidente de Trump, o Mike Pence, um conservador, opôs-se ao que o Trump tentou a 6 de Janeiro (de 2021), quando perdeu as eleições, o assalto ao Capitólio, e o chefe do gabinete de Trump deu uma entrevista recentemente a dizer que Trump era um fascista. Ou, portanto, os sectores do Partido Republicano com quem Trump teve que se relacionar em 2016 eram sectores do Partido Republicano que não eram trumpistas. Hoje, Trump domina o Partido Republicano e vai ter uma maioria no Senado e na Câmara dos Representantes. Portanto, já mudou uma série de juízes do Supremo. Possivelmente ainda irá mudar mais. Tem como programa transformar a administração americana, ou seja, colocar homens "leais" em todos os lados. Ou seja, o projecto de Trump é um projecto autocrático e o projecto de transformar a América, uma grande democracia e uma das primeiras democracias do mundo, numa autocracia tem um conjunto de condições, com apoio em sectores dos oligarcas americanos. Hoje existe uma autêntica oligarquia também nos Estados Unidos. Tem apoio desses oligarcas e, portanto, estamos numa situação extremamente perigosa.

RFI: E lá está, mencionou que, de facto, Donald Trump poderia também ter a maioria no Senado e também uma posição muito confortável na Câmara dos Representantes. Isto significa que, no fundo, restam poucas protecções a nível do Estado e a nível da lei nos Estados Unidos para travar eventuais projectos autocráticos de Donald Trump.

Álvaro Vasconcelos: O que é que resta é a sociedade civil, o movimento das mulheres, o movimento anti-racista, uma sociedade civil muito forte, como constatámos mesmo nestas eleições. A capacidade de mobilização dos apoiantes do Partido Democrata, dos apoiantes de Kamala Harris, era muito maior que os de Trump, os indivíduos que iam as bocas das urnas tentar orientar o voto no sentido favorável ao Trump, por exemplo, na Pensilvânia -que foi um estado fundamental para a vitória de Trump- esses indivíduos eram pagos por Musk. Não eram activistas da sociedade civil. A campanha democrata era baseada num número impressionante de activistas. Portanto, a sociedade civil americana é uma sociedade civil muito forte. Eu diria mesmo que é a sociedade civil mais forte do mundo, em termos de activismo, de associações, de capacidade de mobilização. Lembre-se da Marcha das Mulheres depois da vitória de Trump em 2016: um milhão de mulheres nas ruas de Washington. Há uma grande capacidade. Lembremos o movimento Black Lives Matter. Têm uma capacidade enorme de mobilização da sociedade civil americana. É aí que está alguma capacidade de oposição a Trump.

RFI: Um dos projectos de Trump é baixar os impostos e também aumentar os direitos aduaneiros para os produtos importados, o que pode significar, a nível interno, menos serviços públicos, e a nível externo, uma economia também bastante mais fragilizada para os parceiros dos Estados Unidos e, nomeadamente a União Europeia.

Álvaro Vasconcelos: Sem dúvida, Trump é um proteccionista e um nacionalista. É algo que nós ainda não falamos. Mas Trump é, em primeiro lugar, um nacionalista. "Make America Great Again" é um slogan nacionalista. O que Trump está a dizer aos americanos? Está a dizer "nós podemos ser de novo a nação hegemónica, a nação que não tem rival e, sobretudo, que não tem rival na China e na União Europeia". Mas hoje Trump considera a China um adversário muito mais poderoso do que a União Europeia, que tem mostrado, de facto, alguma incapacidade para se afirmar do ponto de vista político. E neste momento também está fragilizada com a subida da extrema-direita em muitos países europeus e, portanto, a política económica de Trump vai ser uma política económica que vai ser terrível para os sectores mais pobres da América, que vão perder parte da pouca protecção social que têm e vai agravar as desigualdades, com a facilidade que vai dar aos oligarcas americanos. Mas vai fazer uma guerra comercial terrível, nomeadamente contra a China, mas também contra a União Europeia. No fundo, a questão que hoje se coloca à Europa é uma questão existencial, porque tem a guerra da Ucrânia de um lado, tem o Trump do outro, que deixará de apoiar a Ucrânia, certamente. Mas sobretudo, terá um Trump claramente antieuropeu e procurando enfraquecer a União Europeia e enfraquecer as democracias europeias. E, portanto, estamos num momento, digamos, quase que existencial para a União Europeia. Eu diria existencial mesmo que, no fundo, haja uma esperança. Mas os dados não mostram que seja esse o caminho provável, que a União Europeia irá acordar. Hoje também há enormes fracturas na União Europeia, inclusive no campo democrático. É o momento de nos unirmos para enfrentarmos a ameaça existencial que Trump representa para a União Europeia.

RFI: Mencionou, nomeadamente, o conflito na Ucrânia. Donald Trump não esconde qual é a sua posição relativamente ao conflito na Ucrânia: deixar de ajudar Kiev e fazer as pazes com a Rússia muito rapidamente.

Álvaro Vasconcelos: Sem dúvida que Trump é um amigo de Putin. Tem uma relação boa com Putin há muitos anos. Putin apoiou a sua campanha eleitoral de 2016. Segundo a imprensa americana, também nesta campanha eleitoral houve uma série de acções de desinformação na Geórgia e de supostos ataques à bomba que eram notícias completamente falsas que tiveram a sua origem na Rússia. Trump quer que a guerra na Ucrânia acabe, já que ele não quer fazer nenhum esforço do ponto de vista económico ou militar para apoiar os ucranianos e acabar já a considerar que a Rússia, os territórios que já conquistou, devem ficar sob controlo russo e obrigar os ucranianos a um acordo de paz que termine a guerra com uma parte do território ucraniano conquistado pelos russos. E nem estou a falar da Crimeia ou dos territórios que a Rússia já tinha conquistado em 2014. Estou a falar do que conquistou no Donbass, nos últimos anos. E depois a Rússia irá consolidando a sua posição ali e logo veremos o que se passa a seguir, porque tudo isto é muito imprevisível.

RFI: Está a pensar nomeadamente na Moldova e na Geórgia?

Álvaro Vasconcelos: Hoje, se eu fosse moldavo ou georgiano, estaria altamente inquieto com a facilidade com que Putin vai poder, de facto, transformar a situação política interior desses países, apoiando os partidos que lhes são próximos e fazendo, no caso da Moldova e da Geórgia, uma extraordinária pressão exterior.

RFI: Outro dossier que espera também Donald Trump a nível das relações externas é o dossier do Médio Oriente. Netanyahu já felicitou Donald Trump. Ele, de facto, tem motivos para celebrar?

Álvaro Vasconcelos: Sim. Netanyahu agora terá todo o apoio de Trump para o seu projecto do "Grande Israel". Nós devemos dizer que esse foi um grande fracasso da administração Biden: o de não ter sido capaz de travar Israel e de apoiar os palestinianos como deveria. Depois do 7 de Outubro, a administração americana colocou-se, aliás como muitos líderes europeus e Estados europeus, ao lado de Israel, na indignação do 7 de Outubro. Mas depois daquilo que se passou em Gaza, do assassinato em massa de palestinianos, de um processo de limpeza étnica que leva ao genocídio dos palestinianos em Gaza e também do que se passa na Cisjordânia, a administração americana foi incapaz de travar Netanyahu. Sabemos que Biden dizia a Netanyahu que ele devia conter-se, que ele devia chegar a um acordo com o Hamas para a libertação dos reféns e para um cessar-fogo, mas nunca utilizou o instrumento, o único instrumento verdadeiramente poderoso que os Estados Unidos têm sobre Israel, que é acabar com a venda de armas a Israel. Isso nunca fez. E nunca fez por razões também de política interna, porque o lobby evangélico nos Estados Unidos, que é poderosíssimo e que dá um grande apoio a Trump, é o lobby mais poderoso pró-Israel. É muito mais poderoso do que o lobby judaico, onde há muitas correntes liberais que se opõem a Netanyahu e gostariam que Netanyahu caísse. Se Kamala Harris tivesse ganho as eleições, Netanyahu não teria em Kamala Harris uma pessoa de que é próximo. Pelo contrário, ela é uma pessoa que considera que Netanyahu é de extrema-direita e que era preciso contê-lo. Também não sabemos até onde é que ela iria nessa contenção, mas sabemos que teríamos um mundo diferente, em que as possibilidades de haver alguma coisa contra o Estado de Israel, nomeadamente contra Netanyahu, era muito mais forte. Hoje nada disso acontece. Pelo contrário, Trump e Netanyahu são da mesma corrente política, são da mesma ideologia e da mesma barbaridade na violência contra o outro e a mesma desumanização dos palestinianos. Nem mesmo as questões humanitárias estarão na agenda. E Trump terá uma capacidade maior de ligação às ditaduras do Golfo e do Médio Oriente. Porque aqui a maior parte dos países árabes do Médio Oriente são ditaduras que gostariam de terem uma boa relação com o Estado de Israel, mesmo com Netanyahu, apesar do que se passa na Palestina. Portanto, Netanyahu hoje tem o caminho aberto para a criação do "Grande Israel", o que é evidentemente uma tragédia para os palestinianos, uma tragédia para a defesa dos direitos humanos e uma tragédia, evidentemente, para todos nós, que acreditamos no direito dos palestinianos a viverem em liberdade e em dignidade.

RFI: Outro aspecto que não mencionamos até agora é a questão do meio ambiente. Donald Trump já disse que tenciona impulsionar as energias fósseis, o que significa, como no primeiro mandato, um recuo em termos de defesa do meio ambiente.

Álvaro Vasconcelos: Está a fazer, no fundo, a lista de todas as tragédias anunciadas, ou seja, do mundo apocalíptico em que nós parecemos estar a entrar. Porque se olharmos para a questão ambiental, com o aumento das temperaturas médias, nos últimos 16 meses, de um grau e meio, que era aquilo que os Acordos de Paris apontavam para se tentar prevenir que acontecesse apenas em 2050, percebemos como é urgente tratar da questão climática, como é urgente ter uma política global. E não pode ser só a política europeia ou americana, mas uma política global que faça do clima estável um património comum da humanidade. Ou seja, que se comece não só a cumprir o Acordo de Paris, mas de facto, a ir mais longe com o Acordo de Paris, que é começar a retirar CO2 na atmosfera. Ora, tudo isso é contrário à visão que o Trump tem da economia americana e do lugar da América no mundo. Passa exactamente como ele dizia na campanha por "furar, furar, furar", ou seja, abrir mais poços de petróleo sempre que for possível. Portanto, não só a nível interno americano, a transição energética que começou com Biden estará em sério risco, como a nível internacional, não há dúvidas nenhumas de que a administração Trump não irá favorecer respostas multilaterais para a questão ambiental. E isso, evidentemente, coloca-nos noutro domínio: no domínio apocalíptico. Evidentemente que nós hoje não podemos cair no pessimismo absoluto e temos que pensar como sair deste futuro tão sombrio que nos parece que será o nosso, o nosso sobretudo, o dos nossos filhos e dos nossos netos. Evidentemente que há caminhos para ir. É bom que a gente converse sobre eles também, mas evidentemente que neste momento é um momento de enorme preocupação.

RFI: Relativamente à África, no seu primeiro mandato, Donald Trump não teve propriamente uma política externa dirigida ao continente africano. A seu ver, que consequências é que esta eleição pode ter para o continente africano?

Álvaro Vasconcelos: É difícil dizer porque, de facto, não é uma prioridade da administração Trump. Também não foi uma grande prioridade da administração Biden e não tem sido uma grande prioridade das instituições americanas. E na competição com a China, certamente que a África aparecerá no radar da administração Trump. O que é que significa para a administração Trump? Significa que os autocratas em África podem ser parceiros importantes porque ele olha para o mundo pela visão da autocracia, pela visão dos homens fortes que impõem a sua vontade à população. E o que pensa Trump? Infelizmente, penso que há cada vez mais gente para quem é o caminho para o desenvolvimento económico e, portanto, o modelo a que podemos chamar o "modelo chinês", que vai ser o modelo de Trump. E isso é interessante. Trump revê-se no "modelo chinês" do ponto de vista político. Para o desenvolvimento económico, olhará para África, possivelmente, olhando para os ditadores africano, como olha para os ditadores do Médio Oriente, da Arábia Saudita em particular, como um aliado preferencial. O que significa para a África? Pensemos, por exemplo, no que se passa neste momento em Moçambique, com grandes manifestações pela democracia, depois do roubo terrível que foram as eleições e o assassinato de uma série de opositores. Temos assistido a enormes manifestações pela democracia em Moçambique. Elas não terão nenhum eco em Washington. E se nos lembrarmos que quando Bolsonaro tentou um golpe, depois de ter perdido as eleições e que Biden interveio para dizer imediatamente que Lula tinha ganho as eleições, com Trump isso não acontecerá. Não acontecerá na América Latina, como não acontecerá em África, como não acontecerá em lado nenhum.