"Guerra comercial dos EUA não é apenas económica, mas também política"


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Feb 03 2025 16 mins   1

O Presidente norte-americano anunciou taxas de 25% sobre produtos do Canadá e México e 10% sobre importações da China. O investigador do Instituto Português de Relações Internacionais, José Pedro Teixeira Fernandes, afirma que a guerra comercial dos EUA "não é apenas económica, mas também política", já que Donald Trump acredita que a globalização prejudicou a economia norte-americana, especialmente com acordos como o NAFTA, entre os Estados Unidos, o Canadá e o México.

RFI: Estamos perante uma guerra comercial? Quais os impactos económicos que estas novas medidas anunciadas por Donald Trump podem ter?

José Pedro Teixeira Fernandes: Estas medidas estão a ser anunciadas e serão aplicadas pelo governo americano. Em primeiro lugar, elas eram de alguma forma antecipadas por tudo o que Donald Trump tinha dito na campanha eleitoral. Naturalmente, isto não invalida o impacto, que veremos muito provavelmente nos próximos meses ou até anos. Esta guerra comercial, termo que acaba por captar um pouco o ambiente, mesmo sendo uma metáfora, dá-nos a ideia de que estamos perante um conflito que não é só comercial, não é só económico. Este é talvez o aspecto mais importante para entendermos o que está em jogo. Temos tendência, o que é compreensível, a analisar as coisas de forma compartimentada: política é política, economia é economia, e assim por diante. Mas a realidade, a este nível, é que estamos a falar de um cruzamento de medidas com impacto económico e empresarial, o que é indiscutível, e no bem-estar, naturalmente, mas com ramificações políticas. Isso torna a avaliação do que vamos assistir nos próximos tempos particularmente difícil, porque, primeiro, Donald Trump tem um quadro mental, uma visão do mundo e ele parece acreditar mesmo que o modelo de economia mais liberalizada e globalizada que se instalou nos últimos 25, 30 anos (ou até mais) é largamente prejudicial à economia americana.

Muitos sectores de actividade deslocaram-se para outros países, não apenas pela globalização, mas pelo acordo comercial. Inicialmente, o NAFTA, depois o acordo que Donald Trump negociou como sucessor do Acordo dos Estados Unidos, Canadá, México, mas, na prática, isso leva, na óptica do governo americano e em particular do seu Presidente actual, a um desequilíbrio comercial injusto para os Estados Unidos. A balança comercial norte-americana, quando comparada com o Canadá, o México, que são os dois parceiros na América do Norte, a China e alguns Estados europeus, está desequilibrada. Em alguns casos, muito desequilibrada. E Donald Trump propõe-se a ajustar isso a favor dos Estados Unidos, não recorrendo a meios mais convencionais, como iniciar um longo processo de negociações comerciais feitas de forma discreta, como seria mais tradicional, eventualmente no quadro da Organização Mundial do Comércio (OMC), que ele ignora na totalidade. Mas, com um conjunto de medidas bilaterais, como as que já estão em vigor sobre o Canadá e o México, ele também assume que isso está directamente relacionado com os problemas migratórios na fronteira e à entrada das drogas nos Estados Unidos, que também, segundo ele, vêm pela fronteira sul.

No fundo, estamos a falar de uma guerra comercial com muitas ramificações políticas ou geopolíticas, o que implica ou implicará negociações bastante difíceis em áreas que vão, em alguns casos, muito além do comércio.

As reacções foram rápidas. O Canadá considera o impacto económico negativo dessas taxas. O México afirma que os Estados Unidos fazem "acusações infundadas". A China, com um grande défice comercial com os Estados Unidos, anunciou que tomará medidas para defender os seus interesses, incluindo a possibilidade de recorrer à Organização Mundial do Comércio. Donald Trump sugeriu que a União Europeia possa ser o próximo alvo dessas mesmas taxas alfandegárias. A retaliação desses países pode criar um isolamento dos Estados Unidos no comércio internacional?

Um isolamento dos Estados Unidos no comércio internacional é difícil, dada a centralidade dos EUA na economia mundial. Quando analisamos a questão do ponto de vista da transação de mercadorias, a China já ultrapassou os Estados Unidos no comércio de mercadorias. A China é o maior país do mundo nesse sector, enquanto os Estados Unidos ocupam o segundo lugar, com um papel central no comércio de serviços e serviços financeiros. Portanto, se a ideia de um isolamento dos Estados Unidos parece praticamente impossível de funcionar, o que isso provocará serão ondas de choque no sistema comercial internacional. A maneira como as relações comerciais funcionavam, com uma razoável estabilidade, assentando em regras negociadas, multilateralmente, até mesmo na Organização Mundial do Comércio, ou em acordos de integração, como o NAFTA, por exemplo, vai estar em causa e provavelmente se transformará, seguindo um modelo menos aberto, mais protecionista. E isso parece ser um objectivo de Donald Trump.

Quanto às reações dos países afectados é verdade que ninguém quer mostrar-se fraco nesta guerra comercial. O que percebemos agora é que o Canadá, o México e a China – embora sejam países muito diferentes e com relações diversas com os Estados Unidos – não se querem mostrar vulneráveis e querem mostrar que também têm capacidade de retaliar. Eles também têm a capacidade de retaliar os produtos que os Estados Unidos exportam para esses países, o que tem uma dimensão importante. Basta olhar para a dimensão das economias americana, canadiana e mexicana, para perceber que existe um poder desproporcional dos Estados Unidos. Isso cria uma competição, de certa forma, um braço de ferro, para ver quem vai ceder primeiro, pois inevitavelmente haverá custos. Se pensarmos, por exemplo, nos consumidores, não há dúvida de que, em alguns produtos, pelo menos, terão que pagar mais. Mas o Presidente norte-americano parece determinado a assumir esse custo. Ele tem um mandato de quatro anos, e, aliás, nem se pode candidatar novamente. Ele tem esta visão de deixar um legado que transforme a forma como o comércio internacional funciona.

Quanto à Organização Mundial do Comércio, o seu papel é muito limitado neste caso. Sei que pode ter algum, basta pensar que a China poderá formalmente apresentar uma queixa na Organização Mundial do Comércio. No entanto, a resolução de conflitos na OMC está bloqueada porque o órgão de resolução de conflitos tem um painel de primeira avaliação e um órgão de apelação de recurso, mas este último não tem juízes suficientes para poder emitir um veredicto. Portanto, os Estados Unidos e a China sabem que a solução não virá pela OMC. A solução será uma negociação bilateral entre os dois países, e é isso que Donald Trump pretende, fazendo prevalecer o seu peso desproporcional nas relações com os parceiros, que, mais tarde ou mais cedo, acabarão por fazer o que ele considera razoável ou aceitável para os seus interesses. Esse é o curso do envolvimento que vamos assistir.

O presidente francês, Emmanuel Macron, reagiu esta manhã em Bruxelas à ameaça de Donald Trump. O Presidente francês garantiu que a Europa está pronta para responder e agir em conformidade. Esta manhã já vimos os primeiros sinais do anúncio dessas medidas, que afectam o sector automóvel. Os mercados, por exemplo, abriram esta segunda-feira em baixa...

Sim. Naturalmente, isso tem ramificações. Estamos a falar de direitos aduaneiros sobre produtos principalmente industriais, mas isso afecta também os índices bolsistas, as taxas de câmbio e as cotações das divisas. São todas as complexas interligações da economia nas suas diferentes áreas. No caso da Europa, vemos o problema que referi anteriormente. Donald Trump vai, certamente, usar também a questão comercial quando ela se levantar, e acredito que isso se vai levantar. Ele vai usá-la para pressionar os europeus sobre a questão da despesa militar. Ele provavelmente sugerirá que os europeus aumentem as compras de equipamentos militares americanos, por exemplo, para reequilibrar a balança de pagamentos entre os países. E muito provavelmente, será esse o tipo de negociação que veremos.

Quanto à União Europeia, isso afectará de uma maneira heterogénea, pois as relações comerciais entre os países da UE e os Estados Unidos não são as mesmas. Por exemplo, a França tem uma relação comercial muito menos significativa com os EUA do que a Alemanha ou até a Itália ou os Países Baixos, nem sequer estão muito expostos directamente, assim, à primeira vista, a este conflito comercial. O que veremos, como mencionei, é um entrelaçamento de questões – comércio, balança comercial, despesa militar, recursos energéticos, exportações dos Estados Unidos – numa grande negociação. É isso que Donald Trump quer, e se as coisas depois se acalmarem, com negociações que vão certamente além das lógicas do comércio internacional, ou se teremos anos de turbulência permanente, isso é uma incógnita.

Segundo Donald Trump, este é um esforço para combater questões como o tráfico de fentanil e imigração ilegal. Pergunto-lhe qual é a correlação entre a aplicação dessas taxas alfandegárias e o combate ao tráfico de fentanil, por exemplo?

Mais uma vez, estamos a ver a ligação de assuntos que à primeira vista não têm uma conexão directa. Donald Trump faz essa ligação de forma estratégica. Ele liga comércio, imigração e o tráfico de substâncias proibidas, como uma forma de usar uma área de negociação para obter concessões em outras áreas. Não há uma conexão directa entre essas questões, mas Donald Trump usa isso como uma estratégia negocial. Ele não resolve o problema com isso, mas usa instrumentos comerciais para obter concessões no que ele entende serem problemas noutras áreas. A relação entre a China, o México e os Estados Unidos é curiosa.

Qual é a relação entre a China, o México e os Estados Unidos?

Essas ligações são interessantes porque o México se tornou, nos últimos anos, o principal parceiro comercial dos Estados Unidos. Isso é extraordinário, tendo em conta o perfil tradicional da economia mexicana. Por quê? Porque, no conflito comercial que Donald Trump desencadeou no seu primeiro mandato, houve um ajustamento gradual da China às novas realidades comerciais e às barreiras que os Estados Unidos também foram impondo. O México, por sua vez, beneficiou disso, tornando-se uma porta de entrada de produtos chineses que, noutros tempos, seriam sujeitos a barreiras comerciais mais altas. Isso explica, em grande parte, o salto que o México deu nos últimos anos, tornando-se o principal parceiro comercial dos Estados Unidos. Se esta linha continuar, o México será um dos grandes perdedores.

Esta segunda-feira, o Presidente sul-africano, Cyril Ramaphosa, rejeitou as acusações de Donald Trump, que alegava que a África do Sul estaria a "confiscar terras com a aprovação de uma lei de expropriação". O Presidente norte-americano afirmou que "cortaria todo o financiamento da África do Sul enquanto não fosse feita uma investigação completa sobre a nova lei, que visa corrigir desigualdades herdadas do tempo do Apartheid". Essa questão vai afectar as relações entre os dois países?

Pode afectar, naturalmente. Este litígio entre os Estados Unidos e a África do Sul está provavelmente relacionado com uma política geral dos EUA de cortar drasticamente a assistência ao desenvolvimento e a ONG’s, considerando que não promovem os interesses dos Estados Unidos. Outro aspecto interessante talvez seja a ligação com Elon Musk, que tem origem na África do Sul. Isso pode reflectir-se nas relações políticas entre os dois países. Mas, muitas vezes, é difícil distinguir se isso é apenas um ruído político ou algo mais substancial, porque Donald Trump tem lançado tantas medidas em áreas tão diferentes que é complicado identificar o que realmente terá um impacto nas relações internacionais.