No ano em que cada mês parece ter 3000 dias, chegou o carnaval. Exceto nos lugares que já têm blocos e festas desde a virada do ano. Quem sou eu para julgar? Esse é o assunto de hoje, mas antes…
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Qual vai ser sua fantasia de carnaval?
Quando eu era criança, eu tinha uma boa relação com o carnaval — tirando a parte de que meu aniversário muitas vezes era “atrapalhado” pela data. Porque… né? Carnaval! Verão, música, todo mundo alegre. Tentar ficar acordado para ver os desfiles na Globo, ser mandado pro quarto quando começavam as transmissões dos bailes de clube. Ir nas versões infantis destes bailes fantasiado de policial americano. Fora que a semana de carnaval era mais uma desculpa para ir encontrar a primalhada em Miguel Pereira e só curtir a vida mágica dos anos 1970 e 80.
Na adolescência, me achei O Inteligentão quando entendi a conexão entre carnaval e quaresma. Não era a páscoa que vinha 40 dias depois do carnaval, mas o carnaval que acontecia 40 dias antes da páscoa. A festa era a despedida dos prazeres antes do período de abstinência radical. Foi assim que virei o adolescente chato que dizia: “Sabia que o carnaval é uma festa religiosa?” Já sou palestrinha desde cedo, como vocês podem ver.
Até que, não tem tanto tempo assim, entendi que o carnaval não é só uma despedida da farra antes do jejum, é mais que a famosa “festa de Baco”. É um momento em que estamos autorizados a experimentar identidades diferentes das dos outros 360 dias do ano. De deixar de “ser” para somente “estar”.
Sempre me chamou a atenção a contradição de o mesmo homem que seria considerado menos masculino (a maior desgraça possível na nossa sociedade) por usar uma camiseta rosa no trabalho poder sair de Sabrina Sato completa no bloco e ninguém questionar. Na quarta-feira, a fantasia volta para o armário (ou direto pro lixo), assim como a mudança. O que aconteceu no carnaval, acaba no carnaval.
Ou uma pessoa com quem me relacionei no século passado, que hoje entendo que era uma das figuras mais conservadoras que já conheci. Mas que contava com orgulho como adorava sair em trio elétrico cheirando loló e competindo com as amigas pra ver quem beijava mais. E tudo bem, não havia conflito nem hipocrisia. É só carnaval.
O carnaval não é só a festa da bebida ou da pegação — mas se quiser, pode. É o festival do “viva outras vidas”, materializado nas fantasias, só que muito mais do que “eu sou o Superomi”.
Essa ideia de troca de papéis é antiga. Em Roma, séculos antes de Cristo, a Saturnália já promovia uma inversão social temporária. Durante esta festa, celebrada no solstício de inverno (a época do Natal, que também foi influenciado pelo festival de Saturno), os romanos suspendiam as regras da sociedade. Escravos e senhores trocavam de lugar — não só simbolicamente, mas em aspectos práticos da vida. Os escravos podiam comer à mesa com seus senhores, vestir suas roupas, falar sem restrições e até dar ordens. Os senhores os serviam. Lojas, escolas e tribunais fechavam. Guerras eram interrompidas.
Os romanos usavam o pileus — um chapéu cônico que simbolizava a liberdade — e trocavam presentes simples como velas e pequenas estatuetas. As ruas se enchiam, a cidade inteira se entregava a banquetes, bebedeiras e jogos de azar, normalmente restritos. Um “rei da folia” era escolhido por sorteio para presidir o caos festivo.
Quando o cristianismo virou a religião oficial do império, a igreja tentou substituir essas festas pagãs por celebrações em nome de Jesus, mas o espírito de inversão social já estava enraizado na cultura. Assim, o desejo humano de escapar temporariamente das regras encontrou novos caminhos, novos nomes e novas datas no calendário, mesmo na própria estrutura eclesiástica. Na Europa medieval, a mais famosa destas festas foi a festum fatuorum, a “Festa dos Tolos”, celebrada por clérigos em igrejas da França. Durante um dia, os padres de menor hierarquia zombavam de seus superiores, escolhiam um “Bispo dos Tolos” e realizavam paródias de cerimônias religiosas. Não só o sagrado virava profano, o sério se transformava em cômico.
Existia também a Festa do Asno (festum asinorum, porque tudo fica mais católico em latim), onde um burrico era levado para dentro da igreja e celebrado como figura central, em homenagem ao corajoso animal que carregou a Sagrada Família na fuga para o Egito. Ao final da missa, em vez de dizer “vão em paz”, o padre zurrava três vezes, e o público respondia também com zurros no lugar do tradicional “amém”. A Igreja acabou proibindo as duas celebrações nos anos 1400, mas a ideia de um período de licença social não desapareceu.
O nosso Rei Momo é a personificação moderna desta tradição de troca-troca. Ele não é o rei de verdade, mas por quatro dias recebe as chaves da cidade e instala seu reinado temporário. A confusão começa, a ordem é invertida, a zoeira impera. A origem do personagem está em Momo, deus grego da zombaria e do sarcasmo, o primeiro sarcasticuzão, sempre pronto pra apontar defeitos, mesmo nos outros deuses — que levou, ora ora, à sua expulsão do Olimpo. Quando a figura chegou ao Brasil no século 19, a ideia era coroar um homem gordo, bonachão, comilão e beberrão para simbolizar os excessos permitidos naqueles dias. É o anti-rei perfeito, que governa não pela austeridade, mas pela permissividade. A escolha do Momo carioca é evento oficial da prefeitura.
E tem que ser. A coroação do Rei Momo é um ritual carregado de significado. O prefeito entrega as chaves da cidade ao rei da folia, numa encenação que diz algo como: “O poder real fica suspenso. Agora quem manda é a festa.”
Em um mundo cada vez mais centrado na identidade, o carnaval é a hora de ser quem você não é, em uma sociedade que, ali, não funciona mais nas regras anteriores. Mas nem todo mundo se aproveita disso e fica preso nos seus personagens. É por isso que tenho uma leve implicância com um bloco de São Paulo que só toca “punk e rock pesado” (em ritmo de carnaval). Porque seus fundadores não querem ouvir essas “músicas chatas”, sejam elas marchinhas, sambas ou Ivete. Era pra ser inclusivo, achei só preconceituoso.
Se o carnaval é o momento de dissolvermos nossas identidades para tentar outras experiências, toca Arerê sim, pô! Deixa os Ratos de Porão pro resto do ano. Mas tudo bem, sábado pularemos lá, porque carnaval também é estar com a nossa galera. Tenho até amigos que são roqueiros.
Toda essa história de inversão da ordem se encaixa com o cristianismo ser considerado “a religião do perdão”. Jesus morreu pelos nossos pecados. Jesus existe para perdoar nossos pecados. E o carnaval é o maior perdão do ano. Enquanto aquela prefeita do Maranhão quer trocar o carnaval por um evento gospel (parece que vai rolar mesmo), dá para tentar ver o feriado não como uma contradição aos valores cristãos, mas seu complemento necessário. E se a reza ficasse pra, sei lá, pensando alto aqui, os 40 dias depois do carnaval? Desruptei agora, diz aí.
Mas calma. Carnaval não é bagunça. É o famoso “se combinar direitinho…”, mas tem que combinar. Quando eu era um garoto juvenil, comecei a namorar uma menina poucas semanas antes do carnaval. Ela já estava com viagem marcada para a Região dos Lagos e, quando nos encontramos na quarta-feira, tinha um cara na porta da casa dela. Foi o primeiro “é meu primo” da minha carreira. Tudo bem, eu sobrevivi. Era só ter combinado.
Então, apesar de todo esse papo de inversão, o carnaval também tem que ter muito respeito. Não é porque na quarta-feira tudo está perdoado que você vai beijar quem não quer ser beijado, ou abusar do espaço do amiguinho. Fantasia não é salvo-conduto. “Não é não” segue valendo. A inversão de papéis funciona ao haver consentimento de todas as partes envolvidas.
O que me traz de volta ao cara que se veste de mulher no carnaval, mas não “vira gay” no resto do ano. A questão não é tão simples quanto parece. Ele pode se vestir de mulher, de indígena ou de qualquer fantasia sem consequências de longo prazo. A quarta-feira chega, ele volta ao terno, à vida normal, ao privilégio. O mesmo não acontece no sentido inverso, né? Eu fico aqui imaginando uma cena de carnaval onde um cara vestido de mulher é assediado por uma mulher vestida de homem.
O carnaval é uma tentativa de quebra das relações de poder, mas essas relações continuam existindo, é claro. O cidadão romano sabe que não virou escravo para sempre. É só brincadeirinha. Idolatramos drag queens e pessoas trans por quatro dias para, logo depois, voltarmos a uma sociedade que as marginaliza. Vivemos no país que lidera o ranking de assassinatos de pessoas trans.
Lá atrás, o carnaval era um jeito dos reis e papas dizerem “aproveitem aí, acreditem que vocês agora estão no poder”. Será que mudou? O negro vira estrela da TV, a mulher vira rainha (da bateria), o morador da comunidade é destaque do samba-enredo. Até mesmo o contraventor que financia a escola é aplaudido na avenida. Ali pode, depois volte para onde você veio, por favor.
Se é assim, o carnaval é uma verdadeira quebra ou só uma válvula de escape que mantém tudo como sempre foi? O historiador russo Mikhail Bakhtin dizia que o riso e a festa podem ser subversivos, mas também podem servir para reforçar o sistema. A inversão temporária alivia as tensões sem ameaçar a estrutura. Se sabemos que tudo volta ao normal na quarta-feira, não há perigo real de mudança. A transgressão é permitida porque é passageira. Visto assim, o carnaval é uma festa de inversão de papéis e, por isso mesmo, um ritual de aceitação do resto do ano.
Quem acompanhou o Clube de Cultura de “A crise da narração”, vai lembrar de Byung-Chul Han contando que antes da chegada do “storyselling” os feriados tinham função narrativa, contavam uma história coletiva. Hoje, viraram só mais uma data para o consumo, o próximo presente a ser comprado. Será que o carnaval é a última das festas que ainda carrega um significado, ou também virou só “vou beber muito”? Para mim, parte da resposta está em todos os “pré-carnavais” e “carnaval fora de época”. Não há calendário nem ritual, só uma balada temática.
Mas esse não é o assunto de hoje. Só quero dizer o seguinte: aproveite o carnaval para tentar ser quem você não é. Pense no que a palavra fantasia pode significar. Nem que seja algo simples como “menos crítico comigo mesmo” ou “não ficar pensando no amanhã”. Imagine possibilidades. Talvez o você do carnaval tenha alguma coisa pra ensinar ao você do resto do ano. De um jeito ou de outro, tudo se acaba na quarta-feira.
Por hoje é só
Cuidem de si, cuidem dos seus. Mais que tudo, divirtam-se. Até a próxima.crisdias
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