Neste quarto episódio, a Série Termos Ambíguos traz uma análise do termo Patriotismo, mostrando as interpretações que a extrema direita tem feito sobre o termo ao longo da história, e como ele foi incorporado ao discurso dos seguidores do bolsonarismo. Os entrevistados do episódio são Raquel Rodrigues, Adriana Marques e Odilon Caldeira Neto.
Daniel Faria: Nas ruas, nas redes sociais, em conversas de família… nos últimos anos, o Brasil assistiu ao ressurgimento de um sentimento nacionalista que ecoa por todos os lados. O termo patriotismo foi ressignificado e instrumentalizado para consolidar uma narrativa populista, conservadora e autoritária. Mas essa ideia de patriotismo, que para muitos soa como a defesa da pátria e dos valores morais, esconde um lado obscuro, que ameaça as instituições democráticas e fomenta o discurso da extrema direita.
Tatiane Amaral: Em 2018, o Brasil presenciou a ascensão de Jair Bolsonaro à presidência, mas essa trajetória não surgiu do nada. Por mais de duas décadas, Bolsonaro foi uma figura à margem do debate político, com um discurso que atraía a atenção de uma parcela restrita da população. Contudo, foi durante o golpe de 2016, que destituiu a então presidente Dilma Rousseff, que Bolsonaro se aproveitou da polarização para se apresentar como uma alternativa ‘salvadora’. Sua retórica de patriotismo e ‘Brasil acima de tudo’ se tornou um chamado à ação oportunista, explorando o clima de incerteza política do país.
Daniel: Seu discurso era simples, direto, mas repleto de ideais fascistas. Deus, Pátria, Família e Liberdade. Uma retórica que atraía a atenção dos conservadores de extrema direita. O patriotismo, para Bolsonaro, se tornou um símbolo central de sua campanha, um emblema que evocava a “nostalgia” de um Brasil dominado pela Ditadura Militar de 1964. Esse período, marcado por repressão política, censura e tortura, é visto por alguns como um tempo de ordem e desenvolvimento, usando o patriotismo como justificativa para ações autoritárias. Essa visão romantizada do passado se entrelaça com a narrativa de Bolsonaro, que sugere que a defesa da “pátria” justifica medidas drásticas contra opositores, colocando o patriotismo acima da democracia e dos direitos individuais.
Tatiane: Mas o uso do patriotismo na retórica bolsonarista vai além de um simples sentimento de orgulho nacional. Durante e após a campanha presidencial de 2018, essa ideia foi instrumentalizada para estabelecer uma divisão clara entre ‘nós’ e ‘eles’. De um lado, os chamados ‘patriotas’, cidadãos que, na visão de Bolsonaro e de seus seguidores, defendem os valores tradicionais da nação. Do outro, a oposição, representada por um imaginário comunista e partidos de esquerda, rotulados como ameaças aos pilares do país. Nesse contexto, a narrativa bolsonarista distorce a noção de patriotismo, colocando-a como um escudo contra aqueles que desafiam sua visão de Brasil
Daniel: Pra você que ainda não nos conhece, eu sou o Daniel.
Tatiane: E eu sou a Tatiane, e esse é o quarto episódio da série Termos Ambíguos, que apresenta a cada episódio um termo popularizado no debate público pela extrema direita. Esses termos são analisados pela publicação “Termos ambíguos do debate político atual: pequeno dicionário que você não sabia que existia”.
Daniel: Esse podcast é uma parceria entre o podcast Oxigênio, do Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo, da Unicamp, e o Observatório de Sexualidade e Política, o SPW, na sigla em inglês. Aqui vamos explorar termos que estão muito presentes no nosso dia a dia, mas principalmente no debate político atual. E como vimos na agora, o tema de hoje é PATRIOTISMO.
Tatiane: Mas, de onde vem realmente esse conceito? Como essa ideia de patriotismo foi moldada ao longo da história, até se tornar um dos principais pilares da retórica da extrema direita?
Para entender o que significa ser patriota no mundo contemporâneo, é importante voltar à origem desse termo. Afinal, o que é realmente o patriotismo?
Raquel Rodrigues: O termo patriotismo é um termo de origem grega a parte da pátria na palavra grega, ela tem ali a pátria e pai dentro da pátria. E o mais importante é que ele nasce como um termo de lealdade à República.
Tatiane: Essa é a Raquel Rodrigues, autora do verbete sobre patriotismo no dicionário de Termos ambíguos, explicando como o conceito foi construído historicamente.
Raquel Rodrigues: O termo vem da palavra grega patriotas, que é composta por pátria externa, que também vem de pater, pai, Na Grécia, Roma, era associado à lealdade à polis, à República. O apego ao bem comum, as leis de em termos de direitos e a organização da sociedade. E depois ele renasce nas repúblicas autônomas italianas do século 15, e ganha novos contornos a partir do século 18 com o estado de nação se tornando um modelo universal de gestão da vida política.
O Rousseau associou patriotismo e nacionalismo à valorização de traços de uma nação, tanto políticos, culturais como étnicoraciais. mas, como a gente sabe, esse termo foi apropriado e invocado por ideologias muito diferentes.
A gente vê que existe muita contradição ali. As pessoas que se dizem patriotas, mas se colocam contra uma boa parcela da população, e eles querem se diferenciar. O patriota é um cidadão de bem porque o cidadão de bem, ele aglutina várias coisas, uma dessas coisas é essa característica, essa faceta, é patriota, né?
Mas a gente tem um histórico no Brasil. De um nacionalismo, de um patriotismo lá desde dos integralistas.
Daniel: O integralismo foi criado nos anos 1930 por um grupo de intelectuais e um dos seus maiores expoentes foi Plínio Salgado, jornalista e escritor de formação católica muito forte. Após viajar para a Europa e conhecer Mussolini, Salgado trouxe ao Brasil uma versão adaptada do fascismo italiano. Ele acreditava que a pátria deveria estar acima dos conflitos de classe e das divisões políticas, promovendo um nacionalismo forte, com inspiração na religião e na ordem social rígida.
Raquel Rodrigues: Com o lema Deus, pátria e família. O mote deles tem a pátria ali no meio, junto com com Deus e família e no próprio militarismo. Um dos slogans da ditadura militar era “Brasil, ame ou deixe-o”. É o slogan do Bolsonaro para se eleger é que era “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos” também inspirado num lema nazista, alemão de deutschland, “O alemão acima de tudo de todos”.
Tatiane: Com seu discurso, os militares buscavam não apenas um amor incondicional à pátria, mas também a exclusão de qualquer crítica ao regime. Ao colocar o amor à nação acima de tudo, o slogan reforçava a ideia de que quem não se alinhava aos interesses do governo não merecia estar no Brasil.
Daniel: Assim, a noção de patriotismo se transformava em uma ferramenta de controle social, onde o questionamento das políticas do governo era interpretado como um ataque à pátria. Essa retórica não apenas se perpetuou na memória coletiva, mas também encontrou eco nas campanhas contemporâneas, como a de Bolsonaro, que reutiliza esse discurso para consolidar sua base de apoio
Tatiane: Mas nem sempre a definição desse tipo de ideologia poderia ser chamada de patriota. O historiador e professor da Universidade Federal de Juiz de Fora, Odilon Caldeira Neto, explica que a definição, na verdade, seria nacionalista:
Odilon Caldeira Neto: O termo nacionalismo, ele era preferido ao termo patriotismo, eventualmente patriota dava uma tonalidade de pouco índice de politização. Mas porque o termo nacionalismo, ele trabalha fundamentalmente qual a dimensão da formação dos estados nacionais. Com a dimensão da existência de um estado burocrático, centralizador. E o termo patriotismo ou pátria, né? Por definição, ele tem uma relação com a dimensão da da origem; como a origem de, digamos, inclusive de traços com traços familiares.
Mas o termo patriotismo de fato, ele começa a ser intensamente utilizado no campo da extrema direita me parece que, sobretudo após o fim da Segunda Guerra Mundial. A gente precisa situar que o nacionalismo se torna efetivamente um problema no sentido da arena política Internacional após o fim da Segunda Guerra Mundial ou mesmo antes do início da Segunda Guerra Mundial No contexto da emergência dos regimes autoritários, das ideologias políticas extremadas à direita, que tinham o nacionalismo como carro chefe, como eixo fundamental da estrutura de uma dimensão mítica e salvacionista da identidade nacional.
Ou mesmo do ponto de vista da organização da sociedade. Então, grupos, entidades, organizações não tinham o termo nacionalista como um problema. Depois do fim da Segunda Guerra Mundial, depois dos resultados efetivos das ideologias ultranacionalistas, o termo nacionalista cai em desuso, não é? E aqui também ele cai em desuso e cai também em desuso grande parte de alguns dos elementos basilares das ideologias políticas do século 20, da extrema direita.
Tatiane: Está aí uma grande confusão, o termo patriotismo passou a ser mais utilizado nos discursos da extrema direita, especialmente para justificar ações ultranacionalistas. E isso se mistura com o mundo dos militares.
Adriana: É quando a gente leu o material produzido pelos militares, os documentos militares, os documentos doutrinários. Eles têm alguns códigos de valores que eles chamam de valores militares e entre os valores militares, um dos valores é o patriotismo, que eles definem como amor à pátria. E esse amor à pátria faria com que eles se empenhassem na defesa do território, da soberania e também em garantir a paz social. E isso está no hall dos valores militares. Essa ideia de que os patriotas são os que amam a pátria e são capazes de dar a vida por ela acabou se estendendo para outros grupos sociais que se identificam com essa mentalidade militarista.
Daniel: Essa quem acabamos de ouvir é Adriana Marques, Professora de Defesa e Gestão Estratégica Internacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro, e Coordenadora do Laboratório de Estudos de Segurança e Defesa. Ela continua explicando:
Adriana Marques: Eles se veem como os tutores da República brasileira. Os defensores dos valores que seriam, os verdadeiros valores é nacionais. Então a gente pode olhar a recuperação do termo patriota também acompanhando essas percepções militares, essa visão de que há uma conexão muito estreita entre a ideia de patriotismo e a ideia de tutela da República no imaginário militar.
Tatiane: Voltando ao contexto atual, Raquel Rodrigues aponta como os símbolos patrióticos, como a camisa da seleção brasileira, estão sendo reapropriados por outros grupos sociais, desassociando-os do bolsonarismo.
Raquel Rodrigues: A camisa da seleção pra população em geral, né? Pra outras pessoas, além dos eleitores do Bolsonaro. E agora eu acho que teve um Marco com o show da Madonna. Teve a participação da Pabllo Vittar usando a camisa da seleção e na parada gay agora, em São Paulo, que a Pablo usou de novo a camisa, tinha um bocado de gente com ela. Então já está tomando novos rumos, né? Que a gente vê de reapropriação, distribuição desses símbolos por por mais gente. Por gente bem diferente do que aqueles que queriam se distanciar.
Daniel: Desde 1945, o discurso dos grupos de extrema direita mudou. Esses grupos começaram a pensar as comunidades nacionais de forma que o patriotismo não está apenas ligado a fronteiras ou questões burocráticas do Estado. O conceito de pátria, para esses movimentos, se tornou uma questão de valores culturais e identitários compartilhados, algo que vai além do simples local de nascimento. Odilon tem uma leitura sobre a noção de pátria para essas pessoas:
Odilon Caldeira Neto: A pátria ela não é apenas o local de nascimento, embora também seja uma questão importante. Mas pátria vai ser, em muitos casos, um sinônimo, e o cidadão da pátria sobretudo, vai ser um sinônimo do que eles entendem como cidadão de bem, que vai estabelecer a defesa de uma verdadeira nacionalidade.
O que é sobretudo para esses grupos, para as tendências da extrema direita, a pátria e o patriotismo, é a exaltação daquilo que esses grupos definem como os valores fundamentais daqui,o que seria em síntese o verdadeiro caráter da identidade nacional desses determinados locais.
Tatiane: Isso nos leva a uma questão importante: quem, afinal, define o que é a pátria? Em muitos momentos da nossa história, especialmente na ascensão do poder militar durante o período ditatorial, vemos que são os próprios militares que se colocam como intérpretes e defensores dos anseios da pátria, independentemente de estarmos em uma democracia ou em um regime autoritário. A professora Adriana Marques entende a posição dos militares nessa questão como fundamental para entender esse contexto.
Adriana Marques: São eles que definem o que é a pátria. Então são eles que definem o que é o patriotismo. É, essa é a questão, como é um termo ambíguo, é um termo que o conteúdo, na verdade é dado por quem o utiliza Isso faz com que independa de uma defesa da democracia ou de um regime autoritário, porque são os militares que interpretam, né? Quais são os anseios da pátria, né? Eles são os definidores e os tradutores desses anseios.
Raquel Rodrigues: É uma composição identitária controversa. Eles alegam que amam o Brasil, mas há uma série de contradições nesse discurso. Eles querem direitos e privilégios apenas para os que consideram ‘cidadãos de bem’.
Daniel: Apesar das confusões e incoerências de alguns, existe alguma norma comum por parte desse setor da extrema direita e no modo como o uso do conceito de patriotismo é apropriado por eles, indo além das questões territoriais e envolvendo ideias de identidade nacional, como explica Odilon Caldeira Neto.
Odilon Caldeira Neto: O que define pátria para esses grupos de extrema direita, e mais do que isso o que define o patriotismo para esses grupos de extrema direita. Ele não está ligado exclusivamente a questões associadas às dimensões burocráticas ou mesmo territoriais do estado dos estados nacionais, também pode estar associada a partir de questões como imigração e assim por diante, mas além dessas questões me parece que pátria, num sentido no léxico, num sentido do uso para grupos e tendências da extrema direita é a defesa de um tipo de indivíduos é que fazem parte daquela comunidade tida como legítima para embarcar, se apropriar e disseminar um valor de identidade nacional constituída.
Tatiane: Além do patriotismo, outro aspecto central na ideologia da extrema direita é o culto ao militarismo, que ressurge periodicamente, especialmente com a ascensão desses grupos, como detalha a professora Adriana Marques.
Adriana Marques: Nós temos ondas de militarismo que acontecem de tempos em tempos. A gente vive uma onda militarista onde esses valores militares passam a ser cultuados pela extrema direita, né? A extrema direita tem tido uma ascensão nas últimas décadas e a extrema direita tem valores do militarismo. Agora, no que diz respeito às forças armadas brasileiras, esses são sentimentos como eu disse, que existem dentro das forças armadas e de tempos em tempos eles são ativados. Então a gente teve o ativamento desse sentimento de que os militares são tutores da pátria e publicamente, com um movimento político que atribuía aos militares também essa função.
Daniel: Outro ponto importante no discurso da extrema direita é a maneira como a religião é utilizada para reforçar seus valores. Essa estratégia tem raízes históricas no Brasil e continua a ser adaptada no cenário atual.
Odilon Caldeira Neto: No caso bolsonarista, existem algumas continuidades,sem dúvida alguma, existem algumas continuidades. A questão de apelo ao discurso religioso me parece que é um elemento que a gente pode traçar como elemento de continuidade. Não é à toa, inclusive, que o lema que outrora foi de propriedade dos integralistas, ele é depois apropriado e rearticulado por grupos bolsonaristas. Não é inicialmente como Deus, pátria, depois como Deus, pátria, família e Liberdade. Mas além dessa questão das continuidades, eu acho que é importante situar também que há algumas diferenças. O sentido de religiosidade, que era a noção de Deus para os integralistas, mais do que a noção de Deus, mas sim a prática dessa exaltação de Deus e do cristianismo para os integralistas era uma noção de um catolicismo, de um catolicismo conservador né com a presença da Igreja católica dos setores conservadores da Igreja Católica no cotidiano brasileiro, seja na dimensão religiosa mas também na dimensão política.
Tatiane: Uma estratégia recorrente da extrema direita é promover um clima de medo e insegurança, exagerando supostas ameaças à moralidade e aos valores tradicionais. Esse tipo de discurso busca mobilizar seguidores em torno de pautas conservadoras, como avalia Raquel Rodrigues.
Raquel Rodrigues: Eles usam muito a estratégia do pânico moral para atrair essas pessoas para esse lado com esses valores morais cristãos né conservadores com base na ameaça comunista, a ameaça trans, essas pessoas que vão por exemplo, doutrinar os filhos delas em ideologia de gênero. Porque estão querendo transformar as crianças todas em trans, para depois recrutar para a luta LGBTQ eles fazem toda uma campanha antigênero, né? É para que não se fale disso nas escolas.
Daniel: Embora a extrema direita se apresente como defensora fervorosa da pátria e dos valores nacionais, suas ações muitas vezes contradizem esse discurso. Raquel Rodrigues entende que líderes que exaltam o patriotismo podem, ao mesmo tempo, demonstrar uma admiração excessiva por potências estrangeiras ou mesmo buscar refúgio fora do país quando as circunstâncias políticas não lhes são favoráveis.
Raquel Rodrigues: A gente não pode rir de coisas que são muito sérias às vezes, mas a gente tem que se segurar muitas vezes. Porque o Bolsonaro mesmo falava o slogan dele de Brasil acima de tudo e batia continência para para Bandeira dos Estados Unidos, né? O próprio Olavo de Carvalho, é que era uma inspiração, do Bolsonaro e do bolsonarismo e dizia que ia ser enterrado no Brasil e foi enterrado lá na Virgínia, nos Estados Unidos. Então é uma de muitas contradições, né? Eles, Ah, eu amo o Brasil, mas se o PT ganhar, eu vou me exilar, auto exilar nos Estados Unidos. Então eles têm uma uma série de contradições nesse sentido. Eles gostam de acho que de algumas do país, né? e eles querem, que eles só para eles, né? O projeto de nação deles, os direitos para eles, que são cidadãos de bem, esses patriotas, né? E para o resto, se o estado é prover, aí é um disparate, é uma um privilégio, né? Que está sendo dado quando não é pro tal do patriota, cidadão de bem”.
Tatiane: Agora, vamos explorar as divergências entre o discurso bolsonarista e o integralista, especialmente no que diz respeito ao papel do Estado na formação da identidade nacional. O bolsonarismo traz uma ênfase na livre iniciativa e na rejeição da presença estatal, contrastando com ideias anteriores de nacionalismo que exaltavam a atuação do Estado. Odilon Caldeira Neto comenta essa mudança e o impacto disso.
Odilon Caldeira Neto: Estabelece algum ponto de divergência entre o discurso bolsonarista e o discurso integralista. E um outro elemento que acho que é possível situar essa questão é a questão da exaltação do próprio estado. O discurso bolsonarista do próprio Jair Bolsonaro e de figuras expoentes do bolsonarismo passam a exaltar a figura da livre iniciativa, a figura do self made man e assim por diante. E passa a estabelecer um discurso contrário à presença do estado, né, na dimensão da formação da identidade nacional. Não somente do ponto de vista produtivo, digamos assim, da regulação das leis de trabalho, dos impostos e assim por diante. Mas também do sentido que se dá a própria, a próprio papel da da nacionalidade. Então essa noção de Liberdade que é colocada é pelo bolsonarismo e por setores do Bolsonarismo, eventualmente ela vai se ligar a questões da educação.
Daniel: A construção da identidade nacional muitas vezes envolve processos políticos complexos e negociações que podem levar à exclusão de certos grupos. Adriana Marques discute como o acomodacionismo político durante a transição para a nova República influenciou a formação da identidade nacional no Brasil
Adriana Marques: Ah, definitivamente nós pagamos o preço do acomodacionismo político. É o nosso processo de transição foi um processo negociado, entre quem comandava o regime militar e os políticos que assumiram, né? E que construíram a nova República. A nova República foi construída a partir dessa acomodação entre as forças armadas e os setores políticos.
Tatiane: A ideia de identidade nacional também pode ser usada para justificar ações que vão contra os princípios democráticos. Raquel Rodrigues explora como certos grupos utilizam símbolos patrióticos para promover visões excludentes e políticas antidemocráticas, criando uma imagem controversa e até caricata do patriotismo.
Raquel Rodrigues: Essas coisas se confundem muito, tem um monte de monarquista patriota, cidadão de bem. É uma composição identitária um bocado problemática assim e controversa. […] Essa composição, essa identidade é um conjunto de visões excludentes de poder e política. De como pode se organizar no Brasil e com valores morais que eles consideram superiores, né? Então, acabam achando que isso, esse manto do patriotismo, do patriota, acaba justificando para eles ações e pautas antidemocráticas. Tanto que eles foram aqueles que incitaram ataques a instituições democráticas, que invadiram o STF, E que acreditavam que iam conseguir é inviabilizar as eleições.
Daniel: Quando exploramos o tema da repressão e do revisionismo histórico, a maneira como a extrema direita lida com a questão indígena revela uma complexa rede de contradições e estratégias discursivas. Odilon Caldeira Neto analisa como o mito da democracia racial é utilizado para rejeitar políticas de reparação e cotas, enquanto a abordagem em relação aos indígenas apresenta uma mudança significativa. Ele destaca como, no passado, os integralistas idealizavam a figura indígena, ao passo que o bolsonarismo e o pensamento militarista atual frequentemente os veem como inimigos potenciais, desassociados do desenvolvimento capitalista e alvos de perseguição e importunação. Essa transformação reflete a tensão entre diferentes correntes do nacionalismo e o revisionismo histórico.
Odilon Caldeira Neto: A questão indígena também, eu acho que é uma questão bem interessante. É claro que, de fundo, o discurso do bolsonarista médio ou não, ou do bolsonarismo e os seus expoentes vai transitar muito em torno dessa base comum do mito da democracia racial brasileira. Sem dúvida alguma, o mito da democracia racial brasileira vai, em alguma medida, justificar a utilização desse mito com uma estratégia discursiva contra as políticas de reparação, políticas de cota e assim por diante. Então ele é um contínuo. Mas a questão indígena eu vejo com uma certa disparidade do sentido que é dada da noção da nacionalidade brasileira. Os integralistas, de uma maneira ou de outra, exaltavam uma figura do indígena. Claro, é um indígena idealizado, mas existia uma exaltação. A figura do indígena em peças de propaganda, é, fotografias de indígenas fazendo a saudação integralista, a presença de alguns indígenas nas chamadas fileiras do sigma, e o próprio lema integralista, né? O seu principal brado era anauê, que é uma saudação oriunda do do Tupi Guarani.
Então essa questão se perde, inclusive porque embora possamos traçar uma linha que pode em alguma medida é ligar o bolsonarismo ao integralismo há outras correntes que estabelecem é formas de alimentação, que alimentam o nacionalismo ou o patriotismo bolsonarista né. E a questão militar aqui é fundamental, né? Então a relação de como que os militares antes, durante sobretudo, mas depois da ditadura civil-militar brasileira imaginaram e executaram uma visão sobre os indígenas, os povos originários brasileiro, em alguma medida distante daquela imaginação que era presente na primeira metade do século XX, nas mentes integralistas e de outros setores autoritários no Brasil.
É uma chave persecutória a indígenas é muito nítida no pensamento militar brasileiro, sobretudo ali na década de 60, década de 70 ou mesmo década de de 80. Não é à toa que, no discurso bolsonarista, os indígenas são colocados eventualmente como potenciais inimigos porque poderiam ser pessoas e coletividades dissociadas do desenvolvimento capitalista, seja do ponto de vista tecnológico, seja do ponto de vista cultural, seja do ponto de vista religioso, mas também porque sobretudo poderiam ser alvos ou instrumentos daquele perigo de internacionalização da Amazônia.”
Tatiane: Raquel Rodrigues nos ajuda a entender como a linguagem é um instrumento poderoso na tentativa de revisionismo histórico pela extrema direita. Ela faz uma comparação com a obra distópica de George Orwell ‘1984’ para ilustrar como esse esforço de ressignificação, com termos como ‘racismo reverso’ e a rejeição da linguagem neutra, é parte de uma estratégia mais ampla de manipulação discursiva e política.
Raquel Rodrigues: Tentando se fazer muitas vezes um revisionismo histórico pela linguagem. Essa trajetória do do textual, dos termos, mostra uma coisa quase aquela distopia de 1984, né? Que uma nova língua que deturpa os termos e ressignifica a nova língua dessa ficção científica era uma uma questão super importante, quanto mais a gente conseguisse suprimir da linguagem, a gente suprime do mundo. Então, acho que são coisas que pode parecer, ela está falando disso e está falando daquilo. mas está tudo conectado, Está tudo tudo relacionado, na verdade. Numa grande campanha, numa grande estratégia.
Daniel: Agora, vendo o impacto social desse discurso, vemos como a extrema direita consegue atrair não apenas aqueles que compartilham diretamente de suas ideias, mas também pessoas que aspiram ao perfil propagado por seus líderes. Raquel Rodrigues reflete sobre como esse fenômeno, muitas vezes marcado pela hipocrisia, afeta não só a política, mas também as dinâmicas econômicas e sociais.
Raquel Rodrigues: O efeito político é de todas as ordens, da ordem econômica, política mais geral, mas muitas vezes pode ser que atraia pessoas que não têm o mesmo perfil, mas que querem ter aquele perfil ou que admiram, porque querem ser proprietários. Esse tipo seguem esse modelo, de ídolo, que normalmente é uma hipocrisia danada.
Tatiane: O processo de negociação entre militares e políticos civis durante a transição para a Nova República deixou consequências profundas que sentimos até hoje, como a anistia que impediu o julgamento dos crimes cometidos durante a ditadura. Adriana Marques comenta sobre os impactos desse acomodacionismo político.
Adriana Marques: É, e nesse processo de acomodação houve, essa anistia, que impediu que os crimes cometidos durante a ditadura fossem julgados. E agora nós colhemos, as consequências desse processo acomodacionista.
Tatiane: Este foi o quarto episódio da série Termos Ambíguos, realizada em parceria com o Oxigênio, a partir do material do Termos Ambíguos do debate político atual: Pequeno Dicionário que você não sabia que existia, coordenado pela Sonia Corrêa. Esse é um projeto do Observatório de Sexualidade e Política (SPW) e do Programa Interdisciplinar de Pós-graduação em Linguística Aplicada da UFRJ e contou com vários autores na produção dos verbetes.
Daniel: A apresentação do episódio foi feita por mim, Tatiane Amaral, doutoranda em Relações Internacionais pelo Programa de Pós-graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas e da equipe de Comunicação e Pesquisa SPW, e pelo Daniel Faria, estudante do curso de Midialogia, na Unicamp, produtor e editor do áudio deste podcast. O roteiro foi escrito pel Valério Paiva, jornalista do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp e aluno do curso de Especialização em Jornalismo Científico, do Labjor, que também fez também as entrevistas. A Tatiane Amaral também fez entrevistas, roteiro e apresentação. A revisão do roteiro foi feita pela Simone Pallone, coordenadora do Oxigênio, pela Nana Soares, da equipe de Comunicação e Pesquisa SPW, e pela Sonia Corrêa, coordenadora do projeto Termos Ambíguos, Pesquisadora Associada da ABIA e Co-Coordenadora do SPW.